31.10.25

XXII

Big Thief, “Words”, in https://www.youtube.com/watch?v=G0BZoZ6hBnc

“Is that a question?”

Hoje acordei radical. Germinou um adubo insultuoso do radicalismo porque assisti a um debate abortado entre um radical e um não radical. Este, desafiado pelas afirmações insultuosas do radical, pela distorção intencional de factos e palavras a ele exteriores, tresleu, emendou ao lado, falou por cima do outro e consumiu-lhe tanta paciência que ela se esgotou, deixando o radical a falar sozinho. 

E eu, que não tenho a menor simpatia com o não radical, senti um aperto tão grande a detonar a angústia que quis manifestar a minha solidariedade. Mas depois, descobri uma irritabilidade perante o sucedido que julgava ausente. Dei comigo a imaginar a reação que teria se estivesse a contracenar com aquele radical pequenino e risível na vez do não radical que se ausentou. Tive a impressão de que teria de sanar aquela atrevida impertinência com o exercício da força, que parece ser o último bastião de linguagem que gente daquela igualha conhece. Conhece, não como código de linguagem que alimenta a comunicação, mas como ferramenta que se sobrepõe à malcriada vozearia que anima o desrespeito sistemático por aqueles que não têm o albergar de habitar ideias diferentes das suas. Porque, admito o ultraje da proposta, esses falsos bravos só se intimidarão com a coragem física que os ameace silenciar. Os que recorrem à bravata são os primeiros a buscar refúgio no medo quando a integridade física é comprometida. São corajosos até a coragem se extinguir na covardia em que se acanham perante a razão da força exercida por outros. 

Estes são os pífios exemplares que se socorrem da razão da força, por não saberem terçar a força da razão. Se sobre eles pender o mesmo procedimento, acovardam-se: são vítimas do seu próprio veneno, reduzidos a pequenos tiranetes subitamente emasculados da viril boçalidade. 

Caio em mim: como pode um não radical servir-se de métodos típicos do radical que tanto desagrado causam? Pode um não radical cair nessa contradição interna, negando a condição que a si chama para se tornar um inaceitável radical à semelhança do radical desfeiteado? Desceria a uma civilidade talvez ainda inferior à do radical esbofeteado? Passaria a ser radical de diferente estirpe?

Logo a seguir, a maré vira do avesso para aquecer interrogações de sinal contrário: se os não radicais continuarem a fazer essas concessões aos radicais, deixando-os a falar sozinhos, não é destes a última voz que fica a pairar? Não é responsabilidade do não radical desmontar as táticas do radical para que não seja sua a última voz a soar até à manhã consecutiva? Deixar os radicais marcarem as regras do jogo não é condescender com a adulteração da civilização? Não teremos um dever de agir que anule as vitórias que estes radicais têm alcançado por capitulação dos não radicais?

Os cânones dos não radicais exigem que se ultrapasse a fronteira da decência que os separa dos radicais. Devem reger-se por uma gramática deliberadamente rejeitada pelos radicais. Sob pena de serem encomendados à trincheira habitada por radicais de variada linhagem, perdendo – definitivamente? – os pergaminhos de moderados. Do mesmo modo que em casos de crise, aqueles momentos em que estamos perante encruzilhadas determinantes para o porvir, temos legitimidade para recorrer à exceção para evitar que os desencaminhados tomem as rédeas e corrompam os valores moderados a partir dos seus alicerces, devíamos ser admitidos a falar temporariamente a linguagem de trapos dos radicais, usando contra eles os mesmos métodos que insistem em utilizar para corromper os valores herdados e nos quais não se reveem. Para que aprendam que a legitimidade que ganharam nas urnas não traduz o sentir da maioria dos que, entre radicais de outra cepa e um amplo espectro de moderados, recusam o labirinto boçal que querem tornar habitual. 

Devíamos ter autorização, temporária autorização, para olhá-los de frente e assustá-los com a nossa coragem física, vendo-os encolhidos e tolhidos, alquebrados pelo medo. Para que, doravante, recuassem na agressividade que ampara a má criação e a falta de respeito que dedicam a quem deles discorda. Para repor um módico de moderação num espaço contaminado por radicais de estirpes opostas, que o máximo que conseguem é polarizar, arregimentando mais fiéis para as hostes do radicalismo.

Seria uma deriva temporária, justificada pela urgência em silenciar os radicais sem o exercício da censura que tanto lhes agrada e de que eles gostam de se colocar como vítimas. O silenciamento ocorreria pelo efeito típico dos dois negativos que se anulam, sendo um deles intencionalmente disfarçado só para obter aquele silenciamento de causa. 

Chegámos a um estado de coisas em que deixei de acreditar que o melhor critério é deixar os radicais falar sozinhos. Quanto mais os deixarmos a falar sozinhos, mais se fazem ouvir. Por falta de comparência dos moderados, que não querem sujar-se na lama em que vegetam os suínos, muitos hão de ceder à litania dos radicais que, à força bruta, vão fazendo o seu caminho de normalização. Só se for à custa da apática cumplicidade dos moderados.

30.10.25

XXI

Slowdive, “40 Days”, in https://www.youtube.com/watch?v=aZXmcM3r3nM

“Say what you mean, mean what you say”.

Sonhava que as pessoas só usavam palavras brandas. Ninguém elevava a voz, mesmo que houvesse condições para desatar as cordas vocais ao sabor da ira que se servia da febre do momento. Por consentimento recíproco, inventou-se um medidor de decibéis para domesticar as vozes que se ouviam nas ruas, nos escritórios, nas repartições públicas e nas casas. 

Foi um gesto importante para a civilização da civilização. A civilização estava a perder qualidades e já era difícil usar a palavra “civilização” para a imputar à civilização que estava em vias de deixar de o ser. Estava – por assim dizer – uma civilização murcha, num estado catatónico. As vozes desabridas, com uma dose elevada de agressividade no teor e na forma, eram uma das principais causas do esmorecimento da civilização. 

Apesar de alguns, com propensão para olhares radicais sobre as coisas do mundo, contestarem o estatuto de civilização (aliás, contestavam o conceito de civilização), essas eram vozes raras e que atravessavam a sua própria crise existencial. Fora dos lugares onde havia elites e intelectuais a dar amparo a esses olhares heterodoxos, o resto das pessoas sentia-se a viver num lugar que tinha conotação com a civilização. Embora o espírito crítico da maioria vivesse em hibernação, havia um punhado de gente mais esclarecida que admitia a decadência que contaminara a civilização. Ela estava em crise. Chegara o momento de convocar os espíritos críticos e sobressaltados: estava em causa a sobrevivência da civilização, ou do lugar como sinónimo da civilização, nem que fosse em doses moderadas.

Decidiram começar por banir a vozearia. Não era só o controlo dos decibéis que filtrava as vozes excessivamente audíveis; era também a forma e o conteúdo, para que não se perdessem as rédeas à moderação. Foi feito um alerta geral: ou as vozes se moderavam, ou a perda de moderação podia ser fatal para a sobrevivência da civilização. Os seus promotores, homens e mulheres corajosos que deram um passo em frente e foram os rostos empenhados nesta re-militância, dramatizaram a convocatória: as pessoas tinham entre mãos um dilema existencial. Caber-lhes acertar uma solução. Banir a vozearia seria uma proibição virtuosa.

A campanha de sensibilização ficou conhecida como “palavras brandas”. Em vez de punições, coimas, multas e averbamentos no registo cívico de cada um, a transfiguração era premiada: descontos em lojas aderentes, prémios de fidelização que davam direito a aquisições gratuitas e, no limite, descontos de impostos – não sendo organizada pelas autoridades, depressa o Estado se converteu às virtudes da campanha.

As pessoas iniciaram o desmame da agressividade latente. Só os espanhóis que estavam de visita é que continuavam a violar os decibéis permitidos – é-lhes inato. Aos poucos, a poluição sonora causada pelo vozear militante foi-se esbatendo. E os radicais foram ficando sem audiência. 

A atmosfera pública estava menos poluída. A civilização começava a desembaraçar-se do veneno que a consumia por dentro. As palavras brandas passaram a fazer parte do comportamento dominante. E as pessoas voltaram a aprender a saber estar umas com as outras.

29.10.25

XX

Anna Calvi feat. Perfume Genius, “I See a Darkness”, in https://www.youtube.com/watch?v=57z_tFA52Xo

“Needless to say”: se o Homem se dedica ao autofágico maltrato mútuo, por que haveria de ser sensível ao mundo a si exterior? “Needless to say”, este naufragar interior só podia ser a tradução de um tratamento ainda pior dos elementos da natureza que o rodeiam.

Muito não se espere de uma espécie que hiberna num contínuo funeral de si mesma. Não é só porque as pessoas se tratam mal, desconfiam umas das outras, mostram incapacidade para aceitarem diferenças e, até, decaem para beligerâncias que as deixam num estado antropológico inóspito. Não se espere que sejam pródigas no tratamento dos animais, das árvores, dos rios e dos mares, do ar que respiramos. Esta é uma espécie vítima do etnocentrismo. Se nem entre nós somos corteses, quem poderia esperar que respeitássemos os animais, as árvores, os rios e os mares e o ar que respiramos?

“Needless to say”: as provas ficam à mostra, cativas de um pessimismo antropológico que não é defeito do intérprete, mas provocado pelos autores. Só que não podemos ser intérpretes sem deixarmos de ser autores. A condição de hermeneuta da espécie não nos habilita a sairmos dela para sobre ela pairarmos com um espírito inquisidor. Antes de sermos exegetas da espécie, somos um entre iguais. Não será a autocrítica que autoriza o deslocamento do eu para a sua órbita, como se ficássemos adestrados a fazer julgamentos desde um miradouro sobranceiro à lodosa planura onde os demais contribuem para a decadência da espécie. 

Há quem discorde: dedicar aos elementos exteriores a nós um tratamento ainda pior do que aos pares é sinal de indulgência em proveito próprio. Fica provado que, entre tanta maldade enraizada, entre tanta boçalidade que é o trato destinado aos demais, a espécie encontra alguma salvação. Os que não são da espécie são objeto de tratamento pior (e a palavra objeto não aparece por acaso nesta teoria que contratualizou a autocondescendência). 

“Needless to say”, quem arremata tamanha teoria precisa de reencontrar um astrolábio que o ajude a situar um lugar para o pensamento. Quem se contenta com uma lógica de mínimos não sabe, não consegue conviver, com mínimos que estão acima daqueles mínimos intencionalmente rebaixados. Os que acordam para uma inesperada bondade relativa da espécie, baseada no tratamento ainda pior do que o tratamento do que é a ela exterior, não sabem ser dignos da espécie a que pertencem. 

É a eles que se deve a vagarosa deriva suicidária a que condenam a espécie no seu estertor futuro. Porque maltratam os seus pares e ainda pior tratam o ambiente. Os dois fatores fundem-se num só: a anunciada morte lenta de um ecossistema inteiro, feito de pessoas e de ambiente.

28.10.25

XIX

Nine Inch Nails, “Everyday is exactly the same” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=ysFxrPNjvNA  

“Everyday is exactly the same”.

De tanta boçalidade que as pessoas destinam às outras, e de tantos serem os arsenais de desconfiança, vivemos cercados pelo trato agreste, assaltados pelas palavras ríspidas que querem pôr em sentido quem as ouve, dominados pelo imperativo de descarregar sobre os outros doses abundantes de dissimulação. Quem se mobilizou para mostrar como é a vida em grupo, que domestica o homem-lobo que há em nós, está a ser desmentido a cada dia que passa. Não se afiguram radiosos os dias que atravessam esta convivência relapsa, cheia de furúnculos prestes a rebentar, eivada pela má representação de cada um perante os demais.

Não precisamos de ser ingénuos; ou, talvez, seja o medo de sermos reféns da ingenuidade que instala as defesas que movemos contra a usura dos outros. Até podem não passar de leves irritações, esses apartes de desconfiança, mas as pessoas não querem ser apanhadas a meio da viagem sabendo que alguém tirou partido da sua boa-fé para exercer um quinhão de má-fé. Para que ninguém seja visto a carregar a marca registada de quem foi vítima da sua inexcedível ingenuidade (porventura confundida com bondade), desconfia-se por sistema. Andamos de pé atrás. E, com isso, temos uma imagem clara de como somos avessos ao avanço que impede a apatia, que não nos deixaria presos à modorra, como é típico de quem fica para trás para não ficar sem chão.

As pessoas não precisavam de ser embaixadoras da simpatia e dos bons modos de quem os aprendeu em colégios da melhor estirpe. A desconfiança sistemática não é privilégio de classes sociais: ela corta a eito, atravessando pessoas de diferentes estamentos. A desconfiança é desenvolvida como reação às bombas que foram colocadas aos nossos pés e deflagraram com o azedo travo de quem se sente vítima da confiança depositada noutros.

Não precisavam de ser todos cavalheiros (alô, Prof. Espada...). Não deviam ser obrigados a ser ciosos dos pergaminhos da boa educação – ainda que não se devesse exigir tanto assim, que a boa educação parece pertencer a fantasmas resgatados da sepultura. Ficava satisfeito se as pessoas não escorregassem para uma agressividade impiedosa quando têm de articular com outras. Se não partissem de um comportamento enquistado de desconfianças voltadas para os outros que lhes são limítrofes. Deviam aprender a não ter de fazer concessões à desconfiança, para não atearem uma série interminável de desconfianças que dão origem a outras, e ainda maiores, desconfianças. Para que esses lugares que nos são uma pele não sejam insuportáveis, para que não tomemos como inabitáveis esses que são os lugares que habitamos.

As pessoas deviam dizer “por favor” quando pedem um simples café e “obrigado” quando são servidas. Não deviam ser arrogantes com ninguém. Não deviam ser partidárias de logros, por considerarem que os logros são o caminho mais fácil para reunir vantagens que, de outro modo, não conseguem alcançar. Não custava ser decente para serem decentes connosco. 

E, àqueles que contrapuserem com a febre instantânea de quem precisa de ripostar para manter o estado adquirido, àqueles que logo berrarem que, se não formos estruturalmente desconfiados e boçais, será a desconfiança e a boçalidade dos outros que nos hão de consumir, diga-se: sem a capacidade de dar uma oportunidade aos outros, seremos sempre reféns da nossa interior insídia. 

Sem precisar de uma bola de cristal, não se adivinham futuros recomendáveis à medida que descemos por esta escada da decadência. 

27.10.25

XVIII

Wilco, “War on War” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=JsNyEcVUles

As mulheres é que aguentam melhor a viuvez. Não se intimidam com a guerra que se abate sobre elas. Pois as pessoas, no seu vagar consuetudinário (mas não necessariamente válido), insistem que uma viúva fica sozinha no mundo, desprotegida, à mercê de todos os contratempos que a podem apanhar sem reação adestrada. 

Mas esse saber consuetudinário é preconceituoso. As mulheres que enviúvam reagem melhor à ausência do que os viúvos. Se as pessoas convencionaram que uma espécie de guerra furtiva se cola à pele das viúvas, condenando-as à extinção num curto braço do tempo, elas provam a fibra de que são feitas. E dizem: “war on war”, que a solidão da viuvez não é uma sentença de morte; anunciam, com a rijeza que não lhes é reconhecida, que vão fazer guerra à guerra que o enviuvar inaugurou contra elas. E dizem ao tempo que pode esperar por elas.

O tempo é deletério para o homem que enviúva. São muitos os casos de um viúvo que não aguenta muito tempo a viuvez. Partem do mundo convencidos de que vão fazer companhia à consorte que tinha murchado antes. Eles é que são fracos. Não sabem terçar os dedos contra a solidão de que a viuvez é súbita procuradora. Mostram que não são ninguém sem a companhia delas. Há quem diga que assim se exterioriza o amor descomprometido dos homens pelas suas companheiras. Perdidos e sem norte, empenhados pela angústia, prometem-se ao mesmo estatuto a que a partida da consorte os condenou. Sem elas, a existência passou a ser irrelevante.

O juízo seria definitivo se o passado fosse obliterado. Se um estalinista exercício redesenhasse o tempo pretérito e os maus-tratos fossem deixados sem paradeiro, se a masculinidade tóxica que consagra uma convivência desigual na vida a dois fosse conceito vão, se a tirania do lar não tivesse sido padrão consensualizado, e o adultério garboso não merecesse indulgência social (de homem que não tem a sua amante, desconfie-se da sua inteira masculinidade – diziam os avoengos, carregados de orgulho próprio). 

O despedaçar do viúvo é o efeito acumulado de todas as entorses passadas, de um egoísmo falsamente valente de quem perde a bússola da existência quando fica sozinho. A sensação de perda não é o equinócio de um amor celebrado postumamente; é a continuação por outros modos do egoísmo enraizado que é perpetuado pelas almas varonis conservadas em formol.

As viúvas não têm mais coragem. Talvez alívio seja o que elas sentem, sem o poderem confessar. Se o matrimónio e a gestão da família, assimilando a desigualdade que sempre condenou a mulher a um estatuto menor, a deixaram na sombra do “pai de família”, o “CEO” do agregado familiar que exercia a tirania com o beneplácito dos costumes assentados, enviuvar é um ato tardio de amor-próprio. E que poucas vezes as mulheres puderam exercer enquanto foram condenadas a estar na sombra do patriarca e a serem obedientes. 

Enviuvar é, para elas, um ato de libertação. E nisso se encerra a coragem maior que lhes pode ser imputada, contra todos os diagnósticos que continuam a errar por excesso de virtudes e uma obnóxia complacência social. As viúvas são as generalas que põem qualquer guerra em respeito.

24.10.25

XVII

The Breeders, “No Aloha”, in https://www.youtube.com/watch?v=lt4um_Yl3r8

“Hope there’s someone”, dizia, desenhando o espectro dos desamores em que se consumia. Haveria uma alma de lhe estar destinada, desabando as insistentes profecias que o condenavam à solidão. Conservava essa esperança, remota, mas ainda viva. 

Não sabia o que era amar. Tinha uma leve desconfiança: estivera enamorado na adolescência, quando a idiotice se apropria de tudo; e desconfiava que fora assaltado por uns súbitos impulsos já adultos, mas não estava seguro do que fora (porque nunca encontrou correspondência). Ninguém lhe tirava da ideia que amar é bom, faz bem à autoestima, dispõe melhor e, assim como assim, o Homem é gregário e deve encontrar uma companhia para a vida. Uma vida é grande de mais para não ser partilhada. 

(Falhava, contudo, o teste de sentido contrário: a vida da pessoa com quem se partilha a própria vida também é de imensidão equivalente; se for partilhada, são duas vidas imensas que, pelas metades em que se somam, completam uma vida imensa. Nunca teve a lucidez para concluir o processo de validação aritmética que invalida a sua aritmética oportuna.)

Durante muito tempo, contestou a teoria apocalíptica de uma amiga. Segundo ela, as pessoas escolhem uma companhia porque têm medo da solidão. Não chegam a amar genuinamente. As pessoas são sempre instrumentais. O amor é uma ilusão, uma farsa se o diagnóstico alinhar com a severidade da desconfiança sistemática. Quando duas pessoas se escolhem e prometem que serão companheiros até ao fim da vida, investem na sua pessoal segurança contra a solidão da velhice. Não há o sortilégio intrínseco do amor. Não passa de um pretexto, de um fingimento dos sentimentos. 

(Desafiada a definir o amor genuíno, a amiga tropeçava sempre na gaguez. Tal como ele, estava condenada à solidão imperativa. A inexperiência explicava o desconcertante atrevimento de definir conceitos que desconhecia por não ser praticante.)

Ainda esperava com a paciência digna de uma diligência desabitada. Haveria uma alma, não necessariamente gémea, de lhe estar ainda destinada. Talvez a amiga estivesse coberta de razão: o medo da decadência é amortecido se não vier acompanhado da solidão. Não há maior egoísmo do que procurar quem se diga ser a pessoa amada como fingimento para erradicar as dores da solidão. 

23.10.25

XVI

Deftones, “My Mind Is a Mountain”, in https://www.youtube.com/watch?v=eVqZrI9JE6Q

O gelo devia ser de uso obrigatório cada vez que se ateia uma discussão. Hoje é difícil manter uma discussão; é muito mais fácil matá-la. As ideias que se opõem são adulteradas, tornam-se um arsenal movido por hostilidade sem precedentes. 

A tolerância passou a ser moeda fraca. Os beligerantes – é caso para assim serem tratados – não se apaziguam enquanto não maltratam os oponentes, deixando-os abraçados ao ridículo a que são reduzidas as ideias que propõem. Não se contentam com a exibição grotesca de quem sai vencedor de um litígio, como se uma discussão tivesse de ser um litígio; o triunfo tem de ser selado com o derradeiro ato: esmagar o adversário, como se tivesse havido uma metamorfose e se tornasse inimigo, como quem esmaga uma abóbora para se rir dos sucos saborosos que escorrem da humilhação do outro. 

Esta tolerância distorcida mata por dentro a tolerância que devia ser hasteada quando alguém debate com outrem. É distorcida a tolerância porque os que se propõem a dobrar o braço dos oponentes, com a violência psicológica que for necessária (e, às vezes, até da física), só cultivam a tolerância desde que ela seja a ponte que se estende para a exibição da sua superioridade. Não se tenha tamanha tolerância em boa conta; não se tenha, até, em conta sequer para ser tida como tolerância. Os outros são idiotas úteis, atirados para o estatuto de inferioridade que serve para exaltar tanta magnificência. Quem assim se comporta não cuida de saber do ultraje que verte sobre si mesmo: um diálogo de surdos; ou, o que é pior, um diálogo de um só não é arma edificante quando se cotejam as ideias que diferem entre si. Não há pior modo de confessar o medo da concorrência.

Este esmagamento do outro viola a dignidade humana. Os beligerantes desta cepa deviam ter a lucidez de identificar os outros como tão pessoas quanto eles. Esmagar o outro não condiz com este estatuto. A metáfora ensina que são as baratas que se sujeitam a esmagamento quando se aproximam de um sapato diligente. Uma pessoa está muitos degraus acima de uma barata.

Só uma loucura não atendida, ou um excesso de confiança que vem pintado com as cores da loucura, explica por que beligerantes desta cepa ignoram que estão na linha de sucessão para serem esmagados pela irredutibilidade dos outros. O futuro dirá quando será a sua vez de serem sujeitos ao tratamento “smashing pumpkin”. 

22.10.25

XV

Hooverphonic, “Unfinished Sympathy” (live at Koningin Elizabethzaal), in https://www.youtube.com/watch?v=amFBqcl-SRs

“Madchester:” um lugar proscrito, por banalização da loucura; quem não conhece um expoente da loucura, a aritmética destronada por fantasmas que emergem ao entardecer e povoam as ruas, os rios, as casas por dentro, com as conspirações latentes que não se ajuramentam a um tempo só? 

Aquele amigo que profetizava a loucura como estado permanente e, todavia, não visível, parece estar do lado certo da razão. As destemperanças do mundo desqualificam-no. A menos que se finja que as ruas por onde andamos sejam um lugar furtivo, escondido na armadura de um passado irreversível como caução das vozes que disputam um apogeu avulso. 

E se formos servos da loucura que não sabemos habitar em nós? E se a nossa loucura, a modesta loucura que tinge o sangue, for aferida pela cumplicidade com um mundo que teima em errar por lugares que procuram a perfeição irrepresentável? Como daríamos resposta às demandas desarticuladas, como se ao estrépito do mundo respondêssemos com uma surdez intencional? Seríamos reféns, ou vítimas, das respostas imperativas às perguntas que se empilhassem numa ordem sem ordem?

Não me devolvo a um estado de pureza que nunca existiu. o simples nascer é expressão da cumplicidade. Dizer que somos vítimas passivas de um mundo que se armadilha de hostilidade é a expiação de uma responsabilidade para que não nos preparámos. Antes a metamorfose da loucura, os despreparos contínuos que salivam a providência insistente de quem diz não pertencer a este mundo, sem saber da existência de um outro que seja alternativa. Antes as figuras geométricas que convocam uma certa transcendência, como se um estado lisérgico fosse o avesso aceitável da loucura.

Se ao menos arrumássemos a loucura num domínio, passando a reivindicar a suserania de um estado tanto imaginado, seríamos senhores de uma tutela sem freios. As palavras seriam convocadas ao acaso, sem gramática a cumprir, apenas o desfreio necessário para quem se mobiliza no desejo de ser desamarrado de tudo. Se o conceito de loucura é esta transgressão, então seja reduzido ao mais elevado estado de loucura, com bandeira esfarrapada e hino contumaz a condizer. À espera de ser reconhecido, sem direito de admissão nos manicómios onde ninguém se esconde de quem é. 

Fugimos. Fugimos de tudo com a sede de tanto querer saber e ver. A luz contrafeita despoja a nudez, virada do avesso no improvável advérbio da vida. Se fôssemos sentinelas, beberíamos a altivez da loucura nunca encomendada. Assim se formula a impertinência dos que atiram sempre a loucura porta fora. Os outros é que são vestais da loucura. Os outros é que se somam aos problemas. Os outros. E, todavia, eu.

21.10.25

XIV

Ladytron, “I See Red”, in https://www.youtube.com/watch?v=72A9nFNhdOM

“Rules and regulations”. Havia um peticionar geral de regras, condutas, leis, normas, regimentos, códigos, regulamentos, portarias, estatutos, mandamentos – havia uma impressão não difusa sobre a atalaia a que as pessoas se entregam voluntariamente, capitulando, sem darem conta que de uma capitulação se tratava através de um paternalismo eufemista. 

Precisam de quem lhes aponte o norte. Não satisfeitos por dependerem de uma entidade que lhes desenha a rota, eram ainda mais exigentes: queriam que essa entidade os condenasse à estreiteza dos corredores por onde seguiriam, só para não terem de escolher; só para abdicarem do livre arbítrio e, como paga, não terem o dever de ser assaltados pelas temíveis incógnitas que são a pontuação quotidiana das suas vidas, se não suplicassem por esta subtração da própria liberdade. 

Apetecia especular sobre o devir em caso de erosão e posterior abate de todas as regras e regulamentos. O que seria dos outros se eles andassem errantes, trespassados por uma orfandade social, desesperadamente à procura de um bastião onde se pudessem refugiar e não o encontrassem?

Dizem, os apóstolos deste estado de coisas, que se somos gregários, se nos habilitamos à convivência com os demais porque sozinhos somos apenas almas erráticas e despojadas de sentido, devemos procurar leis sistematizadas ou não, mas de preferência organizadas, para se organizar a convivência com os outros. Estamos neste estado comatoso, que não é assim reconhecido pelos mendicantes das regras que se oferecem como cimento para não sermos trucidados pelo majestoso comboio onde já embarcou mais do que uma mera amostra da espécie. O patíbulo está cheio destas nobres intenções que, todavia, se estilhaçam num peito que permanentemente suplica pela liberdade que agora se nega. 

Os que tanto precisam de leis e regulamentos são os primeiros a desconfiar da natureza humana. Não venham orquestrar amanhãs impermanentes, assobiando um tempo vindouro massacrado pelo indeterminismo. Não se escondam num idioma sem paradeiro. Não peçam essa trela afocinhante que dá pelo nome de leis e organização social (ou lá o que é). Não se congeminem na anulação de si mesmos, inebriados pelos costumes que os olham através de um periscópio, enquanto um escol se deleita a observar a dependência em que se consumem. Sem saberem – ou, talvez, apesar disso.

20.10.25

XIII

Fontaines DC, “A Hero’s Death” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=OigDCDM5_Qc

Os heróis só existem na banda desenhada. Ou nos sonhos sofisticados de gente iludida com o contraste das cores quotidianas, os que se servem de fantasias para se anestesiarem do que os rodeia.  

As pessoas continuam a precisar de heróis. São o oxigénio para poderem respirar algum ar qualificável. É uma fuga em frente. Não lhes interessa saber que possa haver um precipício à frente: quando caírem ao primeiro passo em falso, quando sentirem a velocidade do corpo a confirmar as boas teorias da física, e quando perceberem, numa fração de segundos, que não há heróis que os venham salvar do embate no chão, terão esses poucos instantes para se desenganarem, antes do epílogo.

Quem precisa de viver na sombra de heróis é quem não acredita em si e nos seus pares. É uma dupla falácia. Por serem tão arreigadamente pessimistas, precisam de entidades míticas que apenas têm existência na sua infértil imaginação. Parece que o pessimismo não é bem recebido na imaginação. Descrentes das possibilidades de gente tão mortal e frágil como eles, exilam-se na salvação oferecida por heróis que ainda não foram confirmados por fontes seguras. O fingimento nunca foi boa prática.

A alternativa por que arremetem é uma via alternativa. Evitam uma interrogação filosófica: considerar alternativa a alternativa a uma alternativa não é uma negação de termos? A anulação do enunciado? O escapismo detetado na adoração de um herói, ou apenas por se acreditar na sua existência, é uma fratura sem remissão. Nem que se invoque o direito fundamental ao sonho, mesmo estando acordado, fingir um fingimento não afasta os pungentes quadros que estão sempre a bater à porta das almas. Quando convocam a sua existência, cobrem o mundo com um verniz deslumbrante: se o mundo passasse a correr de acordo com a tela imaginária de que são curadores, o resto seria tão idílico que depressa muitas pessoas fartar-se-iam da perfeição.

As pessoas precisam de heróis porque sabem que não podem ambicionar a perfeição. Os heróis conseguem atingir essa condição – não se cansam de enfatizar. Só que os heróis são tão mortais como nós. As pessoas que acreditam nos heróis sabem que eles também morrem? A “hero’s death” pode somar-se às dores pungentes que as pessoas têm por pertencerem a este, ou a outro qualquer, mundo. 

E os heróis também têm funerais, como as outras pessoas?

17.10.25

XII

Portishead, “Wandering Star”, in https://www.youtube.com/watch?v=xF4RhDWs2DA

It will end in tears”: o lixo tóxico de um filme melodramático, o peso inteiro sobre as vítimas e, para piorar o diagnóstico, os mais inocentes são as presas preferidas dos encenadores destas injustiças. As pessoas comovem-se com as injustiças. Choram em uníssono com as lágrimas arrebatadas pelo enredo às vítimas circunstanciais. Acabam todas a nadar num mar de lágrimas. 

A comoção é seletiva. Outras injustiças, que não são atiradas para os olhos frágeis das pessoas, ficam à margem. Muitas delas são mais injustas, flagrantemente. As lágrimas ficam retidas nos olhos das pessoas que são solidárias com a desdita dos outros. Injustiças assim são injunções da desmemória, à mercê de um anonimato que múltipla a injustiça pelo valor da sua potência.

Assim é, para que as lágrimas por comoção dos outros não sejam banais. Se elas fossem vertidas a cada injustiça apurada no sismógrafo das emoções, seriam lâminas afiadas a sair dos olhos, ensanguentando-os. Seriam vertidas a cada minuto, à cadência de sessenta segundos. O que resta da Terra seria submerso pelas lágrimas arrancadas à tão elevada sensibilidade das pessoas. O aquecimento global passava para quinto plano. Já não seria responsável pela imersão da Terra. 

Folgo em saber que a comoção é seletiva. Garante a produção controlada de lágrimas. Nem os ascetas da indulgência conseguiam suportar a perenidade da comiseração: se fossem às lágrimas de cada vez que uma injustiça documentada esbarrasse neles, não demorava muito a secar o manancial. E como as lágrimas não reparam essas injustiças, gastam-se sem préstimo visível (a não ser o sempre tão saboroso exercício de compunção pela desdita dos outros, que termina com uma injustiça que morde tão fundo e com o oportuno sossego das almas assim generosas).

Quando acaba em lágrimas, é sempre provisório, um fim a prazo. A comoção fabrica as lágrimas que se enxugam porque, ó ladainha mortífera da masculinidade tóxica, um homem a sério não chora (ou não mostra a colheita de lágrimas em público). Das almas empedernidas, não sobram vestígios para memória futura. As lágrimas entretanto secam. A comoção que irradiava como uma febre sem freio esquece-se da sua mera existência quando o olhar se desvia para a circunstância que tomou conta do momento. Nunca deixaremos de ser reféns do efémero. Ainda bem que inventaram o efémero.

Folgo em saber que, sem a continuidade de injustiças, extinguia-se a razão de ser da existência de muitos que, de outro modo, estariam mergulhados numa crise existencial. 

16.10.25

XI

U2, “October/New Year’s Day”, in https://www.youtube.com/watch?v=iIXcPjr6UVk

Na adolescência, o pai de um amigo confidenciou-nos que devíamos investir nas amizades que fazemos nessa idade. Porque, mais tarde, quando somos reféns da profissão e de outros interesses, os amigos são uma miragem que se desfaz ao primeiro contratempo. Apelava à candura ainda embebida nos adolescentes. Por mais que queiram crescer e depressa, os adolescentes ainda conservam essa ingenuidade que transportam desde a infância, ainda não totalmente sufragada. 

E disse mais: aproveitem agora, quando trabalharem, vai ser difícil saber quem é amigo e quem finge sê-lo. A dificuldade é discernir entre “friends and foes”. A hipocrisia que tinge o mundo encontra uma microscópica representação na hipocrisia do meio profissional. É quando muitas lições da escola e algumas aprendidas na família se dissipam no estrépito da realidade. Torna-se difícil separar os meios dos fins. A amálgama em que se tornam adultera-os: depressa os fins tomam conta dos meios e estes, de tão instrumentalizados, tornam-se fins em si mesmos. Passa a valer tudo o que for preciso para vingar. Até atropelar amigos. Se for preciso, são sacrificados na corrosiva câmara obscura onde a lisura é vítima de entroses graves (e da ética duvidosa, ou da sua rarefação).

Quem se prontifica a degolar amigos é porque não foi amigo deles. Não se diga que a amizade é absoluta, como nada na existência é absoluto. As circunstâncias que mudam acomodam exigências que também mudam. E, com o palco em mutação, os comportamentos adaptam-se às exigências que outrora eram desconhecidas. Os epicuristas proclamam “to kill or to be killed” nos casos-limite em que as circunstâncias se exacerbam. Esticada a corda a esse ponto, não há amizade que suporte o autossacrifício. 

Mas na existência, os casos-limite rareiam. É fora deles que aprendemos a construir uma grelha de prioridades. Quase sempre o fazemos na espuma do momento, espontaneamente, sem ter muito tempo para apurar as alternativas e quanto elas significam. Este é o palco onde medra a existência diária. É dentro deste quadro rotineiro que as decisões se apuram. Quem assim amputar uma amizade por estimar que o seu sacrifício é instrumental a um ganho pessoal de qualquer ordem (o grau não é irrelevante para o caso) é porque não valorizou a amizade em causa. Quando depressa se encomenda o amigo ao estatuto de inimigo, a amizade que existiu foi contingente. Fácil de comprometer ao primeiro abalo sísmico. Depressa somos despromovidos de “friend” a “foe”. Depressa despromovemos “friends” a “foes”.

Se o pai do meu amigo ainda fosse vivo, seria o juiz involuntário de todas as experiências processadas pelos que, embriagados, estavam naquele restaurante a escutar as suas palavras. Se raros são os amigos, múltiplos são os interesses disfarçados de amizades. Ou, dir-se-ia, é o somatório da hipocrisia de todos os microcosmos profissionais e de outros interesses avulsos que se projeta na macroesfera e agiganta essa hipocrisia ao tamanho do mundo.

15.10.25

X

Max Richter, “Mercy Duet”, in https://www.youtube.com/watch?v=GR2VTGR2Zog

Na mesa do lado, um idoso saudosista ouve música sem filtro. Os nós dos dedos matraqueiam a madeira gasta da mesa, acompanhando os acordes da música. É música sem filtros, a forma como ela se faz ouvir: numa generosidade acidental, o homem, que parecia saído de um concerto de uma banda gótica dos anos 80, partilha a sua banda sonora com os demais. Estes deviam agradecer. Não lhe ocorreu que talvez estivessem a ouvir o que não gostam. 

A primeira música completa que ouvi tem no refrão a expressão “brothers in arms”. Outra forma de irmandade não baseada no sangue. Camarada de armas, como os atavismos do meio castrense estão habituados a cunhar – a polissemia das palavras leva-as a geografias muito diferentes quando a mesma palavra se mede pela bitola das ideias ou da pertença ao exército. 

São os camaradas não comunistas que afirmam ser irmãos com base nas armas que empunham em conjunto. Foram treinados para derramar o sangue de irmãos de armas que habitam outras trincheiras. Irmãos de armas que não são de sangue prestam-se a verter o sangue de outros que também não são irmãos de sangue. O sangue é sempre a vítima das armas. O maior mar que existe é aquele feito do sangue da humanidade algemada na sua indigência. 

Se as armas habitam nos antípodas do sangue, falar em irmãos de armas é uma contradição de termos. A usura de quem expropria o sentido comum que enlaça irmãos e sangue para os deslaçar na corrupção do que é ser irmão. Só se formos todos, vítimas potenciais do abuso de armas, irmãos por o sangue se derramar para o oceano hediondo onde habita a indecência da espécie. 

O homem musical trauteia o refrão: “brothers in arms, we are brothers in arms.” Cantarola mecanicamente. Faz como os que não fazem concessões à melancolia: entregam-se à melodia e desligam-se da geografia das palavras. 

(Se calhar, o homem nunca teve irmãos.)

Se bebesse as estrofes daquela música, e se tivesse tido irmãos para saber o que é o mesmo sangue marear nas veias de outra pessoa, insurgir-se-ia contra a mera ideia de poder haver “brothers in arms”. Porque o sangue positivo é aquele de que frui a vida, não o sangue cerceado pela ação das armas à guarda de um arsenal. O sangue das armas é o veneno do sangue humano. O sangue desonroso. O sangue que lamenta a existência. O sangue que nunca há-de ocupar o sangue com paradeiro humano. Por maior que seja o número de armas e por mais que o Homem seja lobo de si próprio. 

Só somos irmãos quando o sangue deixa. 

14.10.25

IX

Linda Martini, “Juventude Sónica” (ao vivo), in https://www.youtube.com/watch?v=lAu5z-Wc28I

Todos os porcos chafurdam na sua poça de lama. Nós, ao invés, vegetamos numa "Mudtown". É mais chique, ou não fosse dito em inglês, a língua franca. Era assim que me encontrava: abespinhado pela recorrência com que as pessoas se socorrem da língua franca, desperdiçando a oportunidade do idioma mátrio, despedaçando-o. E não coincidia com o sossego da minha alma, pois não enjeitava o inglês como língua franca quando se justificava que fosse a língua franca.

As pessoas escorregam para a língua franca porque vaidosamente querem exibir um naco de erudição, ou porque consomem tanta cultura anglo-saxónica que se destreinam do idioma mátrio. Só falta aceitarem que se reinventa a sua identidade, como se a partilha de línguas fosse às origens da identidade para se aferirem por uma nova bitola. E lá estava eu outra vez preso a um interno paradoxo: quem me ouvisse dizer as palavras acabadas de dizer adivinharia que não sou cosmopolita, que até serei um desses reciclados nacionalistas que emergiram pelo desalfandegar da vergonha de ser nacionalista.

Volto uma casa atrás: há uma terceira possibilidade que explica o recurso sistemático ao inglês: as pessoas desinibem-se ao usar palavras em inglês que, se fossem ditas em português, seriam trava-línguas (pelo menos para os mais púdicos). Continua a ser menos penalizador para certas consciências dizer “fuck” em vez de “foder”. O preciosismo idiomático seria dispensável se o lugar-comum não tivesse colonizado estas palavras e não lhes tivesse imputado a obscenidade. Dizer “fuck you”, ou mandar alguém “foder”, parece injurioso. Só se o sexo estiver em baixa na bolsa dos valores das necessidades humanas – e talvez o sexo seja maltratado, ora porque é tomado por pulsões individualistas, tornando-se uma mera representação de um onanismo com ajuda alheia; ora porque são pulsões exageradamente altruístas que esvaziam o sexo por dentro. As pessoas não se deviam esconder. Do idioma em que aprenderam a falar. E do sexo.

Provavelmente, é descabido coser este parágrafo com o anterior se voltar ao início da conversa. Tu me dirás, querido diário, se não vou transgredir as convenções e magoar uma necessidade biológica, sendo este mais um contributo para a ofensa do sexo. Pois há muito sexo que anda associado ao que metaforicamente são os suínos. O que não é desqualificativo. Provavelmente, somos reféns de uma “Mudtown” quando o corpo segue o que instintivamente o desejo ordena. Perdendo um autocontrolo tão do agrado dos sacerdotes da moralidade (aqueles que, com muita probabilidade, escondem uns fantasmas que os desqualificariam para a teima de serem juízes dos costumes alheios). 

Só se aceita que o sexo seja tangente a uma condição suína se os cânones ainda forem ditados pelas algemas mentais católicas ou de outros credos que também desconfiem do sexo. As pocilgas mentais habitam nos labirintos onde se tecem aqueles que desconfiam do sexo ou que dele fogem por imperícia.

13.10.25

VIII

Sonic Youth, “Silver Rocket”, in https://www.youtube.com/watch?v=viF12Mu3-5w

Lamentava-se que houvesse tanto “wrongdoing” em órbita. Quem acusava parecia isento de fragilidades. Os outros, observados desde a posição sobranceira dos acusadores, eram frágeis almas que erravam por sistema. Erros atrás de erros, erros em cima de erros, uma cordilheira acidentada onde se inventariavam os erros. A constelação de equívocos dizia que não há tirocínio que compense as dores dos erros: se os erros se atravessam na linha contínua do tempo, é sinal de que não extraímos deles a pedagogia que contêm.

As pessoas continuavam a ser delatadas pelo seu “wrongdoing”. Eram isoladas, como se fossem aberrações encomendadas ao estatuto de párias – pois os demais, os que se envaidecem de serem delatores, nunca terão tropeçado em erros. Lamento mais os delatores do que as frágeis almas que insistem em tolejar. Mesmo que o tolejar seja intencional; um proverbial otimismo, um otimismo de refúgio ao mundo circunstante, recusa-se a crer que o erro é intencional. 

Pela maneira de ver dos síndicos do equívoco alheio, não importa admitir os erros próprios. Essa é a representação de dores interiores, uma consumição que só lhes diz respeito. Se esses erros conseguirem escapar à fiscalização de outros olhares síndicos, só os próprios é que deles tomam conhecimento. Para os olhares exteriores, são erros que não aconteceram. E, todavia, aconteceram. Já os erros que saltam para os olhares públicos são implacavelmente perjurados. Os erros ocultos não deixam de ser tão erros como os que chegam ao conhecimento público. Um olhar de atalaia faz a diferença. 

Os erros que vierem na rede são anatomizados, endossando ao seu agente um lugar de humilhação que se soma ao desprazer do próprio engano. Serão julgados por pessoas tão humanamente frágeis como eles. Também propendem para o erro, mas escondem-no da curiosidade alheia. Talvez se encham de contentamento por saberem que os seus erros ficam à margem dos olhares síndicos. Talvez se cubram de legitimidade para assumirem o papel de síndicos dos erros alheios. Como se, através da sua denúncia, expiassem os seus próprios erros. 

Esta é uma peleja acriançada. O erro é a nossa circunstância. Os que se atiram com desdém aos erros dos outros são os que pior convivem com os erros próprios. Não me envergonho dos erros que deixei em pegada. Não me escondo dos erros que estão nos planos do futuro. Sei dos erros e deles não fujo.

10.10.25

VII

Radiohead, “Bodysnatchers” (From the Basement), in https://www.youtube.com/watch?v=EtZ6RMV-kXs

Só contam as causas inteiras. Diziam à boca pequena, parecia que era segredo – se fosse segredo, era para que poucos soubessem (boca pequena) que só contavam as causas inteiras. O que se podia esperar da causa se continuasse reservada para um escol?

Deviam ter começado por definir as fronteiras de uma causa inteira. Ser inteira corresponde a um tamanho? Se a métrica não for a dos números, que critérios balizam a causa inteira? Se por inteira se entender intacta, como pode uma causa sê-lo se, ao manter-se intacta, não aproveitava a ninguém?

Perguntei a um seguidor de causas inteiras. Continuei a saber o mesmo. A única diferença que notei é que não sigo causas inteiras, segundo o especialista de causas inteiras. Disse-o sem tergiversar, com a voz censória de quem tem por sua a caução dos costumes aceitáveis. Incomodado com o topete, ainda fui a tempo de perguntar de onde me conhecia assim tão bem para atestar um juízo tão implacável. Escondeu-se no silêncio, fingindo um ato meditativo que exigia reclusão e solidão. 

Estes são tempos em que ser gregário é um dever sem dissidência (a menos que se queira arrostar a misantropia condenável). E ser gregário arrasta-nos para causas irrecusáveis. Se forem arregimentadas pelas pessoas certas, ficam ungidas com o beneplácito de uma causa inteira. Aos demais sobram os limões com que se envenena o sangue irremediável. 

Projetei a hipótese de me infiltrar. Glosar as causas inteiras que me seriam recusadas se não fingisse o que não sou ao estar infiltrado. Queria, talvez, perceber como medra uma causa inteira. Como a cultivam os que nela habitam. O que fazem para excluir os outros do ecossistema da causa inteira. Se tivesse paciência para suportar o tempo gasto, faria o possível para perceber se os cultores de uma causa inteira não têm desvios à causa – afinal, quem não é assaltado pela sua privativa incoerência? Desisti das intenções. Estou certo de que seria descoberto ao fim de um dia a fazer de conta que estava comprometido com a causa inteira. Nunca fui bom a carregar máscaras.

Uma causa não precisa ser completa. Só precisa ser causa. Ainda que esteja errada. Estará sempre mais certa do que as causas arrogantemente arbitradas como inteiras. Delas, raspado o verniz que as cobre, só sobram estilhaços sem préstimo.

9.10.25

VI

God Is An Astronaut, “All Is Violent, All Is Bright”, in https://www.youtube.com/watch?v=5MkTbIP6XM8

Trouble maker, és um trouble maker

Assim dito, nesta mania torpe de tudo inglesar omitindo as capacidades do idioma mátrio, que dispõe de vocábulos que substituem os que são expropriados à língua inglesa. Filmes de Hollywood a mais, ou efeitos do mercadejar do idioma de que são responsáveis os gurus da moderna gestão, são as causas possíveis da adulteração semântica. 

Semeava problemas. Essa era a sina que me era imputada. Também havia quem acusasse a tendência de me socorrer da hostilidade como arma de defesa, que, contudo, era entendida como arsenal beligerante pelas vítimas da hostilidade. Não me revia nos diagnósticos incisivos. Talvez fosse um expediente para me proteger dos julgamentos, porventura acertados, que deixavam à mostra duas mãos cheias de fragilidades que eram incomodativas. Pelo menos para o exterior, recusava acusação tão corrosiva. Não era capaz de dizer o mesmo quando peregrinava interiormente. Só me faltava apurar se era por defesa do mundo exterior, ativando o efeito ação-reação, ou se era apenas mau feitio.

Suponho que seja mais pelo mau feitio. Um dia, comprei uma T-shirt que tinha uma inscrição em letras garrafais a ocupar toda a parte frontal: “mau feitio”. Se fosse noutros, conhecidos na praça pública por uma inversão de narcisismo ao propenderem sistematicamente para a autoflagelação, o mau feitio era apenas um chamamento para a denegação de tão crítico autojuízo; seria só mais uma, entre tantas, oportunidade para convocar a piedade alheia – que há quem se mantenha vivo ao saltitar de piedade em piedade a seu favor manifestada. 

Não era o meu caso. O mau feitio era invocado em causa própria e com conhecimento de causa. Conseguia ser ofensivo (como antónimo de inofensivo) com uma facilidade desarmante. Nivelava a simpatia pelos mínimos admissíveis e, não o contei a ninguém, era motivado pelo calculismo. Não me escondia do desprazer dos outros. Fugia de lugares públicos onde coincidissem multidões. Ao contrário das melhores teorias da filosofia e da sociologia, tinha provas da corrupção do indivíduo quando cumpre a profecia autorrealizável da sua condição gregária. Guardo essas provas para uso próprio. Talvez um dia as revele, se elas se tornarem um trunfo.

A acusação de ser alguém que só arranja trabalhos continuava a pesar sobre mim. Se nunca entrei numa rixa, nunca usei os punhos para desfeitear vivalma, nunca estive envolvido em crimes, nem sequer numa simples altercação viária e até me refugio da redenção prometida pela igreja ao negar provimento ao conceito de pecado – como pode alguém sentenciar-me como “trouble maker”? Às vezes, solta-se um impropério (como se fosse uma flatulência verbal) contra alguém que coincide comigo no mesmo lugar. Não é sentido; é uma reação instintiva por sentir a usurpação dos outros. Não sei se não ser um “bom rapaz”. Ainda na tenra idade, era assim que as vizinhas velhinhas me descreviam (na altura, ainda com direito a diminutivo: rapazinho).

Da justiça se diz ser vagarosa e, em muitos casos, contumaz. É o que sinto quando me acusam de ser um “trouble  maker”. Seria pior se fosse o “trouble maker”. Noutros tempos, a mesma conjugação de palavras teve imputações elogiosas. Arranjar sarilhos, desses sarilhos assim encapotados numa metáfora, era uma credencial.

8.10.25

V

Deftones, “Ceremony”, in https://www.youtube.com/watch?v=Kbl0aSRzvKg

Três chuveiros depois está um indivíduo a cantar. As pessoas dizem que há muitas pessoas que cantam enquanto tomam banho. Pela amostra, não se confirma o juízo popular. Todos estes anos de assídua frequência de ginásios e foi a primeira vez que um vizinho de balneário apareceu a cantar no duche. 

O indivíduo era um medíocre cantor. Desafinava o bastante para desaconselhar a função. Fez bem em não deixar de cantar. Era o que mais faltava se houvesse um código de conduta, dos muitos que, castradores, se impõem, a limitar a liberdade de desafinar nas condições e nos termos escolhidos. O povo, que de si mesmo se diz tão sapiente, confirma que cantar é um processo heurístico para esconjurar os males que entontecem uma alma. Se o processo for completado por um banho retemperador, podem as pessoas ficar descansadas que os males se dissipam de vez. Pela força da voz desafinada e pela água balsâmica que segrega os males em barda.

Com a água do banho e a voz desafinada não há vultos que resistam. Mas não é garantia de desembaraço dos fantasmas limítrofes. Nem tutela de avistamento de proezas pessoais: ele há artistas que não primam pela assiduidade das águas do banho e que são reconhecidos como génios da sua arte. Fica assim provado que o banho, ou melhor, a falta dele, é a caução necessária para o génio artístico não se dissolver nas águas usadas do duche. 

Os da vanguarda ambientalista propõem o espaçamento dos duches, para evitar que a água seja um recurso em vias de extinção. Dando crédito ao saber popular, estaríamos condenados a coabitar com os génios malignos que nos roubam os dias ensolarados. Mas há muitas personagens populares que não são amigas das águas que levam a sujidade dos corpos, pelo que não se pode estimar tanta a eloquência reivindicada. A causa dos ambientalistas é aceitável: as águas sujas, de tantos males nelas depostos através de um banho, vão ser a pior poluição que rios e mares vão receber, desarmados.

No chuveiro do lado está um indivíduo a cantar, assassinando uma cançoneta pimba que tanta popularidade granjeia. É como se os males de que se despoja entrassem pelos ouvidos dos vizinhos. Pois, lá avisa o povo afinal não sábio, os males de uns são os males dos outros. Pelo efeito de contágio das vozes assassinas de cançonetas pimba em pleno balneário do ginásio. 

7.10.25

IV

Massive Attack, “Atlas Air”, in https://www.youtube.com/watch?v=c61jlHO3rVM

Todos procuram um labirinto. Ninguém gosta que uma safra sem sobressaltos se dilate no tempo. É o pior cansaço. O cansaço invisível, que se insinua sem alojar sintomas, um cansaço do qual se dá conta quando ele morde uma parte grande do corpo. 

Os labirintos ensinam a exigência. Todavia, muitos fogem da exigência, fogem apenas ao saberem que a ideia de exigência começa a fruir nos cérebros que se emprestam para a escala superior a que será dedicado o destino mediano. Esta é uma engenharia complexa: a exigência é uma jura de complexidades que se emaranham à medida que passamos de pergunta em pergunta. É uma engenharia que carece de peritos exímios que não há (os gurus das almas, penhores da autoajuda, não entram nestas contas). Sente-se o bafo esclerosado da orfandade.

Às vezes, as pessoas esmorecem a meio de um labirinto. Quando já passaram quatro vezes pela mesma encruzilhada e sentem que andam em círculos, começam a temer que o labirinto seja assimétrico (só tem entrada), ou que tantos corredores que se entaramelam uns nos outros causem uma ilusão de ótica digna de uma miragem. O labirinto talvez seja isso, a ideia de uma miragem. A imagem projetada da miragem engana as pessoas, que eram capazes de jurar que apreciaram o labirinto desde o exterior e que ele não tinha a aparência de ser uma construção ciclópica.

Deixamo-nos atirar para dentro de um labirinto. Ele não é procurado intencionalmente pelas pessoas. As cordas são adestradas por outros, os arquitetos que investem na antítese da autoajuda e estão dispostos a testar as capacidades interiores dos que se prometem a um labirinto. As pessoas cruzam-se na rua sobranceira ao labirinto que poucos sabem que é um labirinto. O chão ladrilhado parece ter uma fina camada de água. As pessoas são ensinadas a caminhar sobre a água e exultam, precipitam-se na autoimagem de alguém que rivaliza com divindades. Os milgares não correm apenas por conta delas. As almas desguarnecidas que se mobilizam num labirinto e são industriadas a reconhecer a capacidade divina de quem anda sobre a água são vítimas de um logro. 

Nos labirintos, ninguém é escoltado. Não há mapa que valha ao labirinto. Não há meios auxiliares que ajudem os utentes – não há manual de instruções; não há, sequer, instruções. As desregras impõem-se com a gramática que desmobiliza os fantasmas dos lugares inertes onde exercem o seu domínio. É disso que as pessoas precisam. Não é de suplicar por um decreto socialista que fixe em vinte e três graus a temperatura máxima admitida nos neófitos dias de outubro.

6.10.25

III

Drink the Sea, “Outside Again”, in https://www.youtube.com/watch?v=An3eUoEpRaU

Ninguém falava da fábrica de terças-feiras. Era lá que os homens de rosto escondido trabalhavam. Quase ninguém dava pela sua existência. Exceto as porteiras dos prédios vizinhos – como ensinou o poeta surrealista, é da natureza das porteiras saberem da vida das pessoas. Elas desconfiavam de homens tão sinistros. Perguntavam: se andam com os rostos escondidos, o que escondem? Eles e quem lhes dá emprego? E, ademais – rematavam as perguntas sucessivas no epílogo da sua insaciável curiosidade – o que se fabrica naquela fábrica que nem sequer anuncia o seu nome ao público?

Tirando as porteiras, ninguém sabia da existência da fábrica das terças-feiras. Era a confirmação da desimportância das porteiras. Fora do seu estreito ecossistema, as porteiras não conseguem fazer chegar as angústias e perplexidades aos demais. Marx e Engels, e todos os seus discípulos, teriam ainda mais a teorizar no domínio da luta de classes se lhes fosse dado saber como as porteiras são tratadas com indiferença pelos demais.

Assim era. Quem observasse as porteiras a observarem tudo o que se passa à sua volta anotaria no caderno de observações que as pessoas evitam chegar à fala com as porteiras quando entram e saem dos prédios. Os estratagemas variam: fingir que se está a falar ao telemóvel ada (e a conversa é sempre mais importante do que meter conversa com as porteiras); há quem atalhe caminho, com educado pedido de desculpa pelo meio que disfarça a impostura, anunciando que está muito atrasado para um compromisso qualquer; há quem dedique lhes uma indisfarçável indiferença, dando razão aos apóstolos da luta de classes e como os de classe superior espezinham os de classe inferior com o chicote da indiferença.

Se não fosse o preconceito contra as porteiras, as pessoas que não são porteiras ficariam a saber que nas imediações há uma fábrica suspeita. Nessa altura, as demais pessoas poriam em campo a sua propensão para também serem porteiras e porteiros e não ficariam sossegadas enquanto não descobrissem o que se fabrica naquela sinistra fábrica povoada por não menos sinistros trabalhadores. 

(Ao que Marx & discípulos se apressariam a corrigir a oração: não há trabalhadores sinistros; os sinistros capitalistas é que os põem nessa sinistra condição.)

Se as porteiras não fossem votadas à ostracização, os vizinhos saberiam que são terças-feiras que se fabricam naquela fábrica. E podiam passar a mensagem para que os habitantes da cidade (primeiro), da região (depois) e do país (logo a seguir) – e de países que fossem importadores de terças-feiras, no fim da linha do passa-a-palavra – que quem quisesse protestar contra as terças-feiras devia ir à fábrica que as produz, sita nas traseiras daquele bairro, depois de atravessado o descampado onde dantes estava a fábrica de azulejos. 

E, para não haver viés, dir-se-ia aos interessados que a fábrica de terças-feiras também tem um livro para registar os elogios, caso haja quem queira elogiar uma terça-feira que se tenha atravessado no seu caminho.

3.10.25

II

The Divine Comedy, “Something for the Weekend”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZFjfa_RB6Pc

Não sabemos, mas desconfio que em todos se aloja uma Crimeia escondida. Uma parte que se subleva contra a vontade e parece pertencer ao exterior. Uma parte que atraiçoa a vontade, tornando-a uma absurda região autónoma do ser. Essa é aquela parte de nós que foi anexada por vultos sem identidade, que se tornam inimigos viscerais. Desconhecemos as intenções malévolas de quem coloniza uma parte de nós e, em nosso nome, diz e faz o inominável.

Em parte de nós, uma parte desanexada que é nossa, mas deixamos de dominar. Podemos mover uma beligerância à altura da ideia, muito varonil, de que connosco ninguém bule gratuitamente. Na continuidade da retórica mercantilista, juramos vender caro o topete de quem tomou conta de parte de nós. 

A irritabilidade mobiliza-se contra os nossos propósitos. Se atearmos a beligerância contra os conspiradores que obliteraram a autonomia, o máximo que conseguimos é sentir na carne os efeitos dessa guerrilha. Seremos vítimas de nós mesmos. Sem termos consciência, contribuímos para o ganho de causa dos agressores e eles nem precisam se defender: assistem, sentados num confortável sofá, à nossa estulta diligência que promove a autodestruição.

Os pragmáticos recomendam a capitulação. Essas Crimeias que foram tomadas não regressam ao nosso domínio. São como as bactérias que se instalam contra os efeitos de sinal contrário de todos os medicamentos que se mobilizem contra elas. Acreditar que as Crimeias podem ser devolvidas é uma ilusão. No dicionário dos ocupantes não consta a palavra “generosidade”, nem a palavra “bondade”. Insistir numa guerra civil é como acender uma fogueira onde seremos consumidos à mercê da ausência de lucidez. Insistir é ignorar que seremos os primeiros a perpetuar os males autoinfligidos. Com os ocupantes deliciados, desde o balcão, assistindo à nossa autodestruição.

O pior é que, estando fora do domínio da vontade, essas Crimeias continuam a habitar dentro de nós. Não somos soberanos como nos ensinam os compêndios da moda. Houvesse coragem para deduzir as Crimeias à parte de nós ainda a salvo, e teríamos a garantia de que outras Crimeias não viriam em abono do desassossego.

2.10.25

I

Ólafur Arnalds, “Doria (Island Songs VII)”, in https://www.youtube.com/watch?v=wFp6xnJbs0w

Conversava com o diário: precisava de trezentos e sessenta graus. Um miradouro sobranceiro a tudo o resto, até com vista para o céu, como se adejasse sobre ele e de lá descobrisse a chave para entender a linguagem cifrada que se impusera. 

As luzes noturnas caldeavam-se. Pareciam feixes difusos; irradiavam para o espaço limítrofe e entravam umas nas outras. O olhar atento esbarrava num imenso borrão de luzes que formava um engarrafamento na lucidez. Era a imagem do mundo que o assaltava. As formas indistintas de um espaço e de um tempo arrastados. Este era o mundo ininteligível que se perpetuava. A água onde bebia a interminável perplexidade.

Às vezes, a hermenêutica do mundo era um exercício impossível. Ou pelo menos irrelevante. Como não vivera noutros tempos, não podia comparar os diferentes estados do mundo em diferentes tempos e lugares. Talvez o mal fosse dele. Recuou no tempo. Por que seria tão exigente se tinha provas de que o mundo fora indulgente tantas vezes? Começou a acreditar que o mal era ser tão exigente. Mas se a exigência começava em si mesmo, como não estendê-la aos outros e ao mundo, em geral?

Alguns episódios da paciência do mundo começaram a despontar. Um exame avaliado com excesso de generosidade. A tolerância perdulária de quem desembrulhou um perdão ao ter sido negligenciado. Às escondidas, o desleixo de fazer o que não preconizava. As doenças que não o visitaram. Uma sucessão de pequenos nadas que se tornaram numa mancha em forma de tatuagem sólida, encomendando uma parte grande de si ao que é imprestável. 

Não precisava de solidão para ser assaltado pelas renúncias que atordoavam a carne com a angústia. O pensamento não parava. Magoava, de tanto se exercer e fora da vontade que o devia comandar. Era o contrário: o pensamento ditava ordens à vontade. Colonizada, o seu destino era errar à medida que o pensamento se impunha. Um dia, alguém disse: pensas de mais sobre o teu lugar no mundo. Não devias fazê-lo. Corres o risco de viver à margem do tempo enquanto se subleva o pensamento que te agride.

Quando as dores eram pungentes, era capaz de pedir emprestadas umas preces que as acalmassem. Invejava os rostos aliviados de tensão, os rostos leves que pareciam voar entre as mentiras do mundo. Ah, se pudesse desmontar as armadilhas em que se tecia; se pudesse esconjurar o pensamento incessante. Se, ao menos, aprendesse a cultivar o despensamento. 

Tudo era ao contrário. Ascender a um miradouro que franqueasse uma visão a trezentos e sessenta graus só agravaria o pensamento dilacerante.