9.10.25

VI

God Is An Astronaut, “All Is Violent, All Is Bright”, in https://www.youtube.com/watch?v=5MkTbIP6XM8

Trouble maker, és um trouble maker

Assim dito, nesta mania torpe de tudo inglesar omitindo as capacidades do idioma mátrio, que dispõe de vocábulos que substituem os que são expropriados à língua inglesa. Filmes de Hollywood a mais, ou efeitos do mercadejar do idioma de que são responsáveis os gurus da moderna gestão, são as causas possíveis da adulteração semântica. 

Semeava problemas. Essa era a sina que me era imputada. Também havia quem acusasse a tendência de me socorrer da hostilidade como arma de defesa, que, contudo, era entendida como arsenal beligerante pelas vítimas da hostilidade. Não me revia nos diagnósticos incisivos. Talvez fosse um expediente para me proteger dos julgamentos, porventura acertados, que deixavam à mostra duas mãos cheias de fragilidades que eram incomodativas. Pelo menos para o exterior, recusava acusação tão corrosiva. Não era capaz de dizer o mesmo quando peregrinava interiormente. Só me faltava apurar se era por defesa do mundo exterior, ativando o efeito ação-reação, ou se era apenas mau feitio.

Suponho que seja mais pelo mau feitio. Um dia, comprei uma T-shirt que tinha uma inscrição em letras garrafais a ocupar toda a parte frontal: “mau feitio”. Se fosse noutros, conhecidos na praça pública por uma inversão de narcisismo ao propenderem sistematicamente para a autoflagelação, o mau feitio era apenas um chamamento para a denegação de tão crítico autojuízo; seria só mais uma, entre tantas, oportunidade para convocar a piedade alheia – que há quem se mantenha vivo ao saltitar de piedade em piedade a seu favor manifestada. 

Não era o meu caso. O mau feitio era invocado em causa própria e com conhecimento de causa. Conseguia ser ofensivo (como antónimo de inofensivo) com uma facilidade desarmante. Nivelava a simpatia pelos mínimos admissíveis e, não o contei a ninguém, era motivado pelo calculismo. Não me escondia do desprazer dos outros. Fugia de lugares públicos onde coincidissem multidões. Ao contrário das melhores teorias da filosofia e da sociologia, tinha provas da corrupção do indivíduo quando cumpre a profecia autorrealizável da sua condição gregária. Guardo essas provas para uso próprio. Talvez um dia as revele, se elas se tornarem um trunfo.

A acusação de ser alguém que só arranja trabalhos continuava a pesar sobre mim. Se nunca entrei numa rixa, nunca usei os punhos para desfeitear vivalma, nunca estive envolvido em crimes, nem sequer numa simples altercação viária e até me refugio da redenção prometida pela igreja ao negar provimento ao conceito de pecado – como pode alguém sentenciar-me como “trouble maker”? Às vezes, solta-se um impropério (como se fosse uma flatulência verbal) contra alguém que coincide comigo no mesmo lugar. Não é sentido; é uma reação instintiva por sentir a usurpação dos outros. Não sei se não ser um “bom rapaz”. Ainda na tenra idade, era assim que as vizinhas velhinhas me descreviam (na altura, ainda com direito a diminutivo: rapazinho).

Da justiça se diz ser vagarosa e, em muitos casos, contumaz. É o que sinto quando me acusam de ser um “trouble  maker”. Seria pior se fosse o “trouble maker”. Noutros tempos, a mesma conjugação de palavras teve imputações elogiosas. Arranjar sarilhos, desses sarilhos assim encapotados numa metáfora, era uma credencial.

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