6.10.25

III

Drink the Sea, “Outside Again”, in https://www.youtube.com/watch?v=An3eUoEpRaU

Ninguém falava da fábrica de terças-feiras. Era lá que os homens de rosto escondido trabalhavam. Quase ninguém dava pela sua existência. Exceto as porteiras dos prédios vizinhos – como ensinou o poeta surrealista, é da natureza das porteiras saberem da vida das pessoas. Elas desconfiavam de homens tão sinistros. Perguntavam: se andam com os rostos escondidos, o que escondem? Eles e quem lhes dá emprego? E, ademais – rematavam as perguntas sucessivas no epílogo da sua insaciável curiosidade – o que se fabrica naquela fábrica que nem sequer anuncia o seu nome ao público?

Tirando as porteiras, ninguém sabia da existência da fábrica das terças-feiras. Era a confirmação da desimportância das porteiras. Fora do seu estreito ecossistema, as porteiras não conseguem fazer chegar as angústias e perplexidades aos demais. Marx e Engels, e todos os seus discípulos, teriam ainda mais a teorizar no domínio da luta de classes se lhes fosse dado saber como as porteiras são tratadas com indiferença pelos demais.

Assim era. Quem observasse as porteiras a observarem tudo o que se passa à sua volta anotaria no caderno de observações que as pessoas evitam chegar à fala com as porteiras quando entram e saem dos prédios. Os estratagemas variam: fingir que se está a falar ao telemóvel ada (e a conversa é sempre mais importante do que meter conversa com as porteiras); há quem atalhe caminho, com educado pedido de desculpa pelo meio que disfarça a impostura, anunciando que está muito atrasado para um compromisso qualquer; há quem dedique lhes uma indisfarçável indiferença, dando razão aos apóstolos da luta de classes e como os de classe superior espezinham os de classe inferior com o chicote da indiferença.

Se não fosse o preconceito contra as porteiras, as pessoas que não são porteiras ficariam a saber que nas imediações há uma fábrica suspeita. Nessa altura, as demais pessoas poriam em campo a sua propensão para também serem porteiras e porteiros e não ficariam sossegadas enquanto não descobrissem o que se fabrica naquela sinistra fábrica povoada por não menos sinistros trabalhadores. 

(Ao que Marx & discípulos se apressariam a corrigir a oração: não há trabalhadores sinistros; os sinistros capitalistas é que os põem nessa sinistra condição.)

Se as porteiras não fossem votadas à ostracização, os vizinhos saberiam que são terças-feiras que se fabricam naquela fábrica. E podiam passar a mensagem para que os habitantes da cidade (primeiro), da região (depois) e do país (logo a seguir) – e de países que fossem importadores de terças-feiras, no fim da linha do passa-a-palavra – que quem quisesse protestar contra as terças-feiras devia ir à fábrica que as produz, sita nas traseiras daquele bairro, depois de atravessado o descampado onde dantes estava a fábrica de azulejos. 

E, para não haver viés, dir-se-ia aos interessados que a fábrica de terças-feiras também tem um livro para registar os elogios, caso haja quem queira elogiar uma terça-feira que se tenha atravessado no seu caminho.

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