3.10.25

II

The Divine Comedy, “Something for the Weekend”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZFjfa_RB6Pc

Não sabemos, mas desconfio que em todos se aloja uma Crimeia escondida. Uma parte que se subleva contra a vontade e parece pertencer ao exterior. Uma parte que atraiçoa a vontade, tornando-a uma absurda região autónoma do ser. Essa é aquela parte de nós que foi anexada por vultos sem identidade, que se tornam inimigos viscerais. Desconhecemos as intenções malévolas de quem coloniza uma parte de nós e, em nosso nome, diz e faz o inominável.

Em parte de nós, uma parte desanexada que é nossa, mas deixamos de dominar. Podemos mover uma beligerância à altura da ideia, muito varonil, de que connosco ninguém bule gratuitamente. Na continuidade da retórica mercantilista, juramos vender caro o topete de quem tomou conta de parte de nós. 

A irritabilidade mobiliza-se contra os nossos propósitos. Se atearmos a beligerância contra os conspiradores que obliteraram a autonomia, o máximo que conseguimos é sentir na carne os efeitos dessa guerrilha. Seremos vítimas de nós mesmos. Sem termos consciência, contribuímos para o ganho de causa dos agressores e eles nem precisam se defender: assistem, sentados num confortável sofá, à nossa estulta diligência que promove a autodestruição.

Os pragmáticos recomendam a capitulação. Essas Crimeias que foram tomadas não regressam ao nosso domínio. São como as bactérias que se instalam contra os efeitos de sinal contrário de todos os medicamentos que se mobilizem contra elas. Acreditar que as Crimeias podem ser devolvidas é uma ilusão. No dicionário dos ocupantes não consta a palavra “generosidade”, nem a palavra “bondade”. Insistir numa guerra civil é como acender uma fogueira onde seremos consumidos à mercê da ausência de lucidez. Insistir é ignorar que seremos os primeiros a perpetuar os males autoinfligidos. Com os ocupantes deliciados, desde o balcão, assistindo à nossa autodestruição.

O pior é que, estando fora do domínio da vontade, essas Crimeias continuam a habitar dentro de nós. Não somos soberanos como nos ensinam os compêndios da moda. Houvesse coragem para deduzir as Crimeias à parte de nós ainda a salvo, e teríamos a garantia de que outras Crimeias não viriam em abono do desassossego.

Sem comentários: