17.10.25

XII

Portishead, “Wandering Star”, in https://www.youtube.com/watch?v=xF4RhDWs2DA

It will end in tears”: o lixo tóxico de um filme melodramático, o peso inteiro sobre as vítimas e, para piorar o diagnóstico, os mais inocentes são as presas preferidas dos encenadores destas injustiças. As pessoas comovem-se com as injustiças. Choram em uníssono com as lágrimas arrebatadas pelo enredo às vítimas circunstanciais. Acabam todas a nadar num mar de lágrimas. 

A comoção é seletiva. Outras injustiças, que não são atiradas para os olhos frágeis das pessoas, ficam à margem. Muitas delas são mais injustas, flagrantemente. As lágrimas ficam retidas nos olhos das pessoas que são solidárias com a desdita dos outros. Injustiças assim são injunções da desmemória, à mercê de um anonimato que múltipla a injustiça pelo valor da sua potência.

Assim é, para que as lágrimas por comoção dos outros não sejam banais. Se elas fossem vertidas a cada injustiça apurada no sismógrafo das emoções, seriam lâminas afiadas a sair dos olhos, ensanguentando-os. Seriam vertidas a cada minuto, à cadência de sessenta segundos. O que resta da Terra seria submerso pelas lágrimas arrancadas à tão elevada sensibilidade das pessoas. O aquecimento global passava para quinto plano. Já não seria responsável pela imersão da Terra. 

Folgo em saber que a comoção é seletiva. Garante a produção controlada de lágrimas. Nem os ascetas da indulgência conseguiam suportar a perenidade da comiseração: se fossem às lágrimas de cada vez que uma injustiça documentada esbarrasse neles, não demorava muito a secar o manancial. E como as lágrimas não reparam essas injustiças, gastam-se sem préstimo visível (a não ser o sempre tão saboroso exercício de compunção pela desdita dos outros, que termina com uma injustiça que morde tão fundo e com o oportuno sossego das almas assim generosas).

Quando acaba em lágrimas, é sempre provisório, um fim a prazo. A comoção fabrica as lágrimas que se enxugam porque, ó ladainha mortífera da masculinidade tóxica, um homem a sério não chora (ou não mostra a colheita de lágrimas em público). Das almas empedernidas, não sobram vestígios para memória futura. As lágrimas entretanto secam. A comoção que irradiava como uma febre sem freio esquece-se da sua mera existência quando o olhar se desvia para a circunstância que tomou conta do momento. Nunca deixaremos de ser reféns do efémero. Ainda bem que inventaram o efémero.

Folgo em saber que, sem a continuidade de injustiças, extinguia-se a razão de ser da existência de muitos que, de outro modo, estariam mergulhados numa crise existencial. 

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