Ólafur Arnalds, “Doria (Island Songs VII)”, in https://www.youtube.com/watch?v=wFp6xnJbs0w
Conversava com o diário: precisava de trezentos e sessenta graus. Um miradouro sobranceiro a tudo o resto, até com vista para o céu, como se adejasse sobre ele e de lá descobrisse a chave para entender a linguagem cifrada que se impusera.
As luzes noturnas caldeavam-se. Pareciam feixes difusos; irradiavam para o espaço limítrofe e entravam umas nas outras. O olhar atento esbarrava num imenso borrão de luzes que formava um engarrafamento na lucidez. Era a imagem do mundo que o assaltava. As formas indistintas de um espaço e de um tempo arrastados. Este era o mundo ininteligível que se perpetuava. A água onde bebia a interminável perplexidade.
Às vezes, a hermenêutica do mundo era um exercício impossível. Ou pelo menos irrelevante. Como não vivera noutros tempos, não podia comparar os diferentes estados do mundo em diferentes tempos e lugares. Talvez o mal fosse dele. Recuou no tempo. Por que seria tão exigente se tinha provas de que o mundo fora indulgente tantas vezes? Começou a acreditar que o mal era ser tão exigente. Mas se a exigência começava em si mesmo, como não estendê-la aos outros e ao mundo, em geral?
Alguns episódios da paciência do mundo começaram a despontar. Um exame avaliado com excesso de generosidade. A tolerância perdulária de quem desembrulhou um perdão ao ter sido negligenciado. Às escondidas, o desleixo de fazer o que não preconizava. As doenças que não o visitaram. Uma sucessão de pequenos nadas que se tornaram numa mancha em forma de tatuagem sólida, encomendando uma parte grande de si ao que é imprestável.
Não precisava de solidão para ser assaltado pelas renúncias que atordoavam a carne com a angústia. O pensamento não parava. Magoava, de tanto se exercer e fora da vontade que o devia comandar. Era o contrário: o pensamento ditava ordens à vontade. Colonizada, o seu destino era errar à medida que o pensamento se impunha. Um dia, alguém disse: pensas de mais sobre o teu lugar no mundo. Não devias fazê-lo. Corres o risco de viver à margem do tempo enquanto se subleva o pensamento que te agride.
Quando as dores eram pungentes, era capaz de pedir emprestadas umas preces que as acalmassem. Invejava os rostos aliviados de tensão, os rostos leves que pareciam voar entre as mentiras do mundo. Ah, se pudesse desmontar as armadilhas em que se tecia; se pudesse esconjurar o pensamento incessante. Se, ao menos, aprendesse a cultivar o despensamento.
Tudo era ao contrário. Ascender a um miradouro que franqueasse uma visão a trezentos e sessenta graus só agravaria o pensamento dilacerante.
Sem comentários:
Enviar um comentário