15.10.25

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Max Richter, “Mercy Duet”, in https://www.youtube.com/watch?v=GR2VTGR2Zog

Na mesa do lado, um idoso saudosista ouve música sem filtro. Os nós dos dedos matraqueiam a madeira gasta da mesa, acompanhando os acordes da música. É música sem filtros, a forma como ela se faz ouvir: numa generosidade acidental, o homem, que parecia saído de um concerto de uma banda gótica dos anos 80, partilha a sua banda sonora com os demais. Estes deviam agradecer. Não lhe ocorreu que talvez estivessem a ouvir o que não gostam. 

A primeira música completa que ouvi tem no refrão a expressão “brothers in arms”. Outra forma de irmandade não baseada no sangue. Camarada de armas, como os atavismos do meio castrense estão habituados a cunhar – a polissemia das palavras leva-as a geografias muito diferentes quando a mesma palavra se mede pela bitola das ideias ou da pertença ao exército. 

São os camaradas não comunistas que afirmam ser irmãos com base nas armas que empunham em conjunto. Foram treinados para derramar o sangue de irmãos de armas que habitam outras trincheiras. Irmãos de armas que não são de sangue prestam-se a verter o sangue de outros que também não são irmãos de sangue. O sangue é sempre a vítima das armas. O maior mar que existe é aquele feito do sangue da humanidade algemada na sua indigência. 

Se as armas habitam nos antípodas do sangue, falar em irmãos de armas é uma contradição de termos. A usura de quem expropria o sentido comum que enlaça irmãos e sangue para os deslaçar na corrupção do que é ser irmão. Só se formos todos, vítimas potenciais do abuso de armas, irmãos por o sangue se derramar para o oceano hediondo onde habita a indecência da espécie. 

O homem musical trauteia o refrão: “brothers in arms, we are brothers in arms.” Cantarola mecanicamente. Faz como os que não fazem concessões à melancolia: entregam-se à melodia e desligam-se da geografia das palavras. 

(Se calhar, o homem nunca teve irmãos.)

Se bebesse as estrofes daquela música, e se tivesse tido irmãos para saber o que é o mesmo sangue marear nas veias de outra pessoa, insurgir-se-ia contra a mera ideia de poder haver “brothers in arms”. Porque o sangue positivo é aquele de que frui a vida, não o sangue cerceado pela ação das armas à guarda de um arsenal. O sangue das armas é o veneno do sangue humano. O sangue desonroso. O sangue que lamenta a existência. O sangue que nunca há-de ocupar o sangue com paradeiro humano. Por maior que seja o número de armas e por mais que o Homem seja lobo de si próprio. 

Só somos irmãos quando o sangue deixa. 

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