16.10.25

XI

U2, “October/New Year’s Day”, in https://www.youtube.com/watch?v=iIXcPjr6UVk

Na adolescência, o pai de um amigo confidenciou-nos que devíamos investir nas amizades que fazemos nessa idade. Porque, mais tarde, quando somos reféns da profissão e de outros interesses, os amigos são uma miragem que se desfaz ao primeiro contratempo. Apelava à candura ainda embebida nos adolescentes. Por mais que queiram crescer e depressa, os adolescentes ainda conservam essa ingenuidade que transportam desde a infância, ainda não totalmente sufragada. 

E disse mais: aproveitem agora, quando trabalharem, vai ser difícil saber quem é amigo e quem finge sê-lo. A dificuldade é discernir entre “friends and foes”. A hipocrisia que tinge o mundo encontra uma microscópica representação na hipocrisia do meio profissional. É quando muitas lições da escola e algumas aprendidas na família se dissipam no estrépito da realidade. Torna-se difícil separar os meios dos fins. A amálgama em que se tornam adultera-os: depressa os fins tomam conta dos meios e estes, de tão instrumentalizados, tornam-se fins em si mesmos. Passa a valer tudo o que for preciso para vingar. Até atropelar amigos. Se for preciso, são sacrificados na corrosiva câmara obscura onde a lisura é vítima de entroses graves (e da ética duvidosa, ou da sua rarefação).

Quem se prontifica a degolar amigos é porque não foi amigo deles. Não se diga que a amizade é absoluta, como nada na existência é absoluto. As circunstâncias que mudam acomodam exigências que também mudam. E, com o palco em mutação, os comportamentos adaptam-se às exigências que outrora eram desconhecidas. Os epicuristas proclamam “to kill or to be killed” nos casos-limite em que as circunstâncias se exacerbam. Esticada a corda a esse ponto, não há amizade que suporte o autossacrifício. 

Mas na existência, os casos-limite rareiam. É fora deles que aprendemos a construir uma grelha de prioridades. Quase sempre o fazemos na espuma do momento, espontaneamente, sem ter muito tempo para apurar as alternativas e quanto elas significam. Este é o palco onde medra a existência diária. É dentro deste quadro rotineiro que as decisões se apuram. Quem assim amputar uma amizade por estimar que o seu sacrifício é instrumental a um ganho pessoal de qualquer ordem (o grau não é irrelevante para o caso) é porque não valorizou a amizade em causa. Quando depressa se encomenda o amigo ao estatuto de inimigo, a amizade que existiu foi contingente. Fácil de comprometer ao primeiro abalo sísmico. Depressa somos despromovidos de “friend” a “foe”. Depressa despromovemos “friends” a “foes”.

Se o pai do meu amigo ainda fosse vivo, seria o juiz involuntário de todas as experiências processadas pelos que, embriagados, estavam naquele restaurante a escutar as suas palavras. Se raros são os amigos, múltiplos são os interesses disfarçados de amizades. Ou, dir-se-ia, é o somatório da hipocrisia de todos os microcosmos profissionais e de outros interesses avulsos que se projeta na macroesfera e agiganta essa hipocrisia ao tamanho do mundo.

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