30.3.17

Correio atrasado (10)


Nick Cave and the Bad Seeds, “I Need You”, in https://www.youtube.com/watch?v=BAMZYpZi_M4    
O tempo opressor. Não quadra com as urgências, que alastram na aparentemente infinita espessura do tempo, quando o tempo certo para essas urgências se demora, sem estar atrasado. Só faltava um dia. Um dia para ver se desfazia o nó górdio com a ajuda do perito em dores da alma. Um dia inteiro. Teria de pensar sobre o que fazer para procurar que o tempo até lá não fosse opressor. Sabia o que não podia fazer. Estava em condições de jurar que não ia descair para essas proibições. Mas não sabia o que podia fazer para meter o dia sobrante entre parêntesis.
Tinha de sair do albergue. Já chegava o tempo opressor em sua baioneta constante sobre o olhar. Ficar em casa mais tempo abria o flanco para as fragilidades. Como se costuma dizer, é preciso apanhar ar fresco para limpar as ideias. No caso dele, não era esse o propósito. Era só para fazer com que as rodas dentadas dos relógios fizessem o que lhes competia.
Saiu do albergue apenas sabendo dos lugares aonde não devia ir. Os lugares do vício, que podiam tresmalhar a cura cujo processo estava em andamento. Não longe do albergue, havia um parque público que se misturava com a floresta de tundra que era típica da região. Era dia da semana, não era provável que estivesse muita gente no parque. Já agora, antes que fosse embora de Vladivostoque (dava-o por adquirido), tinha de ir visitar o parque. Gostava de arvoredo e apreciava, em particular, os arranjos de quem concebia os jardins. Como o parque tinha uma área extensa, podia demorar-se e, ao mesmo tempo, enganar o tempo que naquele dia parecia ter ficado estático. De caminho, exercitava-se. A má vida dos últimos tempos instalou a preguiça e desleixou o corpo (não que no tempo pretérito tivesse cuidados com o preparo físico, bem entendido).
Após algum tempo de caminhada, sentia os músculos em combustão. Era a paga pela inatividade. Tinha de se sentar: o corpo pedia tréguas. Em frente a um dos lagos, havia uns bancos que se dispunham paralelos uns aos outros, na perpendicular do lago. Refastelou-se, em pose própria de quem estava exausto, atirando as pernas para a frente, quase paralelas ao chão, para aliviar o fervor que incomodava os pés. À sua frente, uma menina de tenra idade, talvez ainda sem idade para ir à escola, entretinha-se com os seixos espalhados no chão mesmo antes das águas adornarem a margem. Olhou em redor, só para confirmar se algum progenitor (ou um outro cuidador) tinha a menina de atalaia. Dois bancos à sua direita estava uma senhora com o olhar perdido no lago. Era a avó da menina. Uns gansos nadaram vagarosamente desde o lugar em que se encontravam até às imediações da menina. Julgou ser um movimento pavloviano dos gansos, habituados a alimento atirado desde as margens. A menina agitou-se, sem medo dos gansos que pareciam ter um olhar oportunista. A menina correu na direção da avó, despertando-a do torpor em que estava esquecida. Esbracejou na direção dos gansos e apontou para um saco que a avó tinha ao seu lado, jazendo no banco. Decerto seriam sobras (de pão, ou de outra coisa qualquer) para alimentar os gansos.
(De repente, ocorreu-lhe especular, em boicote do quadro bucólico que se havia posto diante dos seus olhos, que dentro do saco não estivessem mantimentos para os gansos, mas uma arma. Fechou os olhos e supôs a menina a envergar a arma – por mais improvável que isto fosse, atendendo ao peso da arma ser superior ao peso da menina – e a fazer pontaria para os gansos. Abriu os olhos. O seu amor pelos animais impedia de prosseguir a elucubração. A elucubração, a seu ver, doentia. Não soube de onde retirou tal especulação grotesca. Se calhar, a sua cabeça já tivera melhores dias. Ou, talvez ainda, os últimos tempos deram-lhe a conhecer uma têmpera desconhecida.)
Quando se desligou da especulação, já a menina atirava para os gansos, com a guarida próxima da avó (não fosse escorregar para a água lodosa), pedaços de algo que não conseguiu, àquela distância, precisar. A menina saltava de cada vez que a mão ia ao saco e vinha cheia das sobras preparadas pela avó. Ria-se, em riso largo e sonoro, quando os gansos mergulhavam o pescoço na água e debicavam o alimento. Um dos gansos, talvez o mais velho (e por isso, menos diligente no abocanhar dos mantimentos), impaciente por ser ultrapassado pelos parceiros, saiu da água e juntou-se à menina e à avó. A senhora deu um passo em frente, interpondo-se entre o animal e a neta, julgando que o ganso estava em preparos agressivos. Não era o caso. O ganso olhou para a menina com olhar de súplica. Queria a sua preferência, atendendo à incapacidade comparativa com os demais gansos. A menina soube afirmar sentido de justiça, desviando a atenção para o ganso que tinha próximo de si. Afagou-o, sob o protesto da avó. Recusou os cuidados da avó e continuou a afagar o ganso enquanto o alimentava, mostrando indiferença aos (porventura) jovens gansos que já estavam saciados. O ganso velho comeu e olhou para a menina. Tinha um olhar baço. A menina percebeu que o ganso era velho e, possivelmente, doente. Pela última vez, passou a mão pela cabeça do ganso, antes de o animal voltar a entrar na água. E ele, à distância, jurou que o ganso e a menina verteram uma pequena lágrima.
Não admitia estar piegas. Quem lhe apontava o dedo, censurava-o pelo desdém que mostrava perante as fragilidades do mundo, pela sua incapacidade de se comover com as coisas que comoviam as outras pessoas. Desviando o pesar sufocado, intuiu que talvez devesse ter sido pai.

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