10.3.17

Ministério do pensamento


This Mortal Coil, “With Tomorrow”, in https://www.youtube.com/watch?v=W_7_PbroaSM    
Dizia-se, à boca pequena (para não ofender os costumes hodiernos, de matiz hedonista), que as pessoas se demitiam do pensamento. Dava trabalho. Na maior parte dos casos, quando as pessoas arriscavam pelos corredores do pensamento embebiam-se em intrincados novelos que iam dar a lugar nenhum. Na maior parte das vezes, passear pelo território do pensamento era a medida certa para ser atirado para o canto onde vegetam os aberrantes. O governo não podia pactuar com a desvalorização do pensamento. Não queria tutelar, por meio da representação que lhe era confiada, gente abúlica. Queria gente adestrada no pensamento, desafiada a desfraldar os interstícios do pensamento, nem que fosse só para ver onde ia desaguar o pensamento libertado das amarras.
Ao anunciar a sua intenção, o chefe do governo voltou a esbarrar na perplexidade dos jovens turcos seu séquito. Incomodados com a ideia, advertiram para o perigo de deixar o pensamento à solta. Estavam com a mira afinada para o pensamento crítico, porventura o que teria voz mais ativa se o direito ao pensamento fosse entronizado num lugar institucional. Podia ser mau para a propaganda do governo. O chefe do governo insurgiu-se e disparou uma pergunta que deixou os jovens turcos lívidos e sem resposta: “e vocês, quando andaram a estudar em afamadas universidades estrangeiras, não aprenderam a cultivar a liberdade de pensamento?” (Por estas alturas, o chefe do governo começou a intuir que o prazo de validade dos jovens turcos estava a extinguir-se.)
A instalação do ministério do pensamento começou a ser tratada. Seria um lugar sem instalação física. Um lugar na Internet, um portal acessível a qualquer pessoa que quisesse depor um pensamento e que o oferecesse ao escrutínio dos demais. O ministério do pensamento seria o ministério com menos funcionários. Teria um ministro, um filósofo a recrutar numa universidade conceituada, sem qualquer ligação ao partido do governo. No ministério iria trabalhar uma equipa de poucos filósofos. Teriam como tarefa apreciar os pensamentos publicados e instigar a discussão.
Sem surpresa, apareceram críticas ao ministério do pensamento. Uns, próximos do governo, fazendo coro com os jovens turcos que começavam a cair em desgraça, temiam que o ministério fosse a oportunidade para desmerecer as políticas do governo e a governação em geral. Outros, acusaram o governo de promover a distração do essencial com decisões que atiravam as pessoas para coisas acessórias (não dando o valor devido ao pensamento). Outros, ainda, temendo o pensamento sem freios, usaram o pretexto que as pessoas não estão preparadas para usar o pensamento e, portanto, o ministério do pensamento seria inútil. Sem saberem, todos os críticos convergiam na redução do pensamento a uma coisa insignificante, talvez por serem paradigmas do mau uso do pensamento.
Ao cabo de um par de anos, o país estava cheio de filósofos. Nas universidades, o curso de filosofia tinha renascido. Não havia memória de tamanho, e súbito, enriquecimento do país.

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