Cigarettes After Sex, “Affection”,
in https://www.youtube.com/watch?v=4HgmlHVxJvo
Três manhãs depois, ainda doía a
cabeça. Não estava habituado à bebida. Para piorar, fora vodca – e o tanto álcool
contido no vodca agravou a recuperação da lucidez. Também não estava habituado
ao frio siberiano. A única vez em que teve o desafio da neve e do frio invernal
foi numa visita de trabalho a Berlim, em meados de um fevereiro que fora inusualmente
ameno na sua terra.
À memória vieram uns elevadores
bizarros no ministério que tutelava os correios. Os elevadores não tinham
portas e subiam e desciam, sempre vagarosamente, sem nunca pararem nos
patamares. As pessoas tinham de possuir alguma destreza e um módico de equilíbrio,
para além de não serem elevadores recomendáveis a quem tinha medo de coisas que
exigissem adrenalina. Para entrarem e saírem, tinham de acompanhar o movimento
do elevador, como se o elevador suplicasse por um passo de dança em sincronia. Havia
pessoas que não arriscavam, temerosas. Preferiam subir e descer os lanços de
escada que fossem precisos. Recorda-se que passou parte do tempo da estadia (três
dias) e subir e descer o elevador, apenas com o propósito de se divertir com a
experiência. Para desagrado do chefe, que reparou no divertimento pueril e o
advertiu em conformidade (e, ainda por cima, à frente dos outros colegas que também
estavam em tirocínio em Berlim).
Nessa noite, vagueou pelas ruas de
Berlim até tarde. Visitou bares e lugares noturnos que não vinham nos roteiros
para turistas. Experimentou o seu alemão enferrujado (estudara alemão durante
três anos, mas desaprendera o idioma por falta de uso). Estava furioso com o
chefe que o advertira, à moda liceal e inquisitória, à frente dos outros. A noite
berlinense serviria para vingança. Tão pueril como, afinal, as sucessivas
descidas e subidas no elevador inusitado no edifício do ministério da tutela.
A manhã seguinte foi uma tormenta das
piores. Foi derrotado pelo grito tonitruante do despertador. À primeira, deitou
desajeitadamente a mão sobre o despertador para o silenciar. Depressa teve um
acesso de lucidez que ativou outro alarme: tinha de se apressar, para não
perder o voo de regresso. O peso da noite ainda arqueava a cabeça e a
indisposição geral amolecia a vontade, emprestando vagar aos movimentos. Foi por
uma unha negra que não perdeu o avião, depois de todos o terem deixado em terra
por se ter atrasado à hora combinada na receção do hotel. Já dentro do avião,
enquanto o peso do corpo se debatia com a turbulência constante do voo,
perguntou se tudo aquilo – as desinteressantes sessões de formação, a preferência
pela infantilidade do elevador que não parava nos patamares, a noite que acabou
por ser tresloucada – não era um pressentimento de fuga.
Deu consigo contrafeito dentro do avião.
Dentro de tudo o que era então a sua vida. Daí a analogia entre a ida a Berlim
e aquela manhã pesada, de frio e dos restos do álcool em excesso, em Tomsk.
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