21.3.17

Correio atrasado (3)


Sensible Soccers, “Bolissol” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=lt9YofEZla0    
Se calhar, o nomadismo era expediente. Uma fuga à matéria sensível que era o assoberbamento do sono através dos sonhos malquistos. Era um pensamento que acorria constantemente, enquanto permanecia numa anestesia geral de si mesmo, viandante sem lugar certo nem rumo escolhido se não ao acaso, visitante de ermos a eito.
Já não se lembrava de ser carteiro. E, todavia, ainda não passara tanto tempo que fosse caução de tamanho esquecimento. Convenceu-se que a demanda de diferentes lugares, e o medo de se confinar num lugar escolhido por critério avulso, eram prova do nomadismo esclarecedor. Uma resposta, talvez a única resposta satisfatória, para as dores que o consumiam por dentro. De cada vez que fugia, despontava um novo sol de onda irradiava um feixe de luz benigna. Era como se tudo voltasse ao zero, e ele voltasse a encontrar páginas em branco para dedilhar umas palavras. Teriam sempre de ser palavras que nunca tivessem sido hasteadas, o que se tornava empreitada árdua. O tempo que carregava às costas, mais os condimentos sucessivos da melancolia, eram lastro que não recomendava a ninguém. O sol neófito mal chegava a medrar, depressa transfigurado numa treva à espera de vez.
Um dia, interrogou-se se todos os pensamentos anteriores, no fundo, os alicerces que julgava rompidos, eram matéria tão incontestável como a que agilizava aquelas conclusões. Talvez exagerasse. Talvez faltasse o desprendimento de quem se vê de fora, com a lente assim formatada, de fora para dentro, para tentar perceber se as lágrimas em que se debatia, o tal compungimento perpétuo (e cansativo para quem coincidia com ele num pedaço do tempo), não eram parte da matéria inverosímil que, por dentro do seu corpo, não era capaz de tomar as rédeas. As fugas constantes, os lugares diferentes de que não sobrava um rasto na consciência, eram a prova que o nomadismo não era solução. Pelo contrário, faziam parte do problema e fermentavam a dissidência de si mesmo.
Um dia, interrogou-se se não devia voltar a casa. Sentia que era onde estavam os seus rudimentos. Percebeu, imerso numa tremenda confusão interior, que as deambulações avulsas, todos os lugares ancorados, eram uma pequena parte do enredo de que era, ao mesmo tempo, ator principal e narrador. Percebeu – ou julgou perceber – que não podia misturar os papeis. Corria o risco de não ser imparcial. Ao tempo que formulou o desejo de regressar a casa, deu-se perdido nas lonjuras de um planalto algures na Mongólia. Não era fácil encontrar o fio à meada e voltar a casa. Conseguiu, para a densidade das suas interiores consumições, tornar o novelo mais impenetrável.
A outra parte de si, aquela pequena parte que conseguia, no púlpito da rebeldia, solicitar aos deuses do inverosímil que instalassem uma grande, e potente, granada mesmo à boca do pensamento, pronta a detonar, estava cansada do caminho iterado que desaguava numa estrada sem escolha. Ele que se debatesse com as suas dores interiores, que a minoritária parte de si preferia capitular. Podia ser que, entregue à impossibilidade do seu ser, acabasse por conseguir nadar para fora das águas lodosas para que se atirava constantemente. Se quisesse regressar das estepes da Mongólia, ele que se preparasse e não pedisse à pequena parte de si em que ainda repousava alguma lucidez que viesse em seu socorro.

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