20.3.17

Correio atrasado (2)


Moderat, “Running”, in https://www.youtube.com/watch?v=tVawpT44Hrk    
Dizia – o carteiro que o deixou de ser – que apetecia ser eremita. De fora, via-se que estava arqueado pelo fardo do desamor. Por isso, fugiu da terrinha. Fugiu das memórias da consorte que o abandonou. Fugiu das atrapalhadas e mal disfarçadas investidas da menina quase quarentona. Partiu em legítima errância. Não estava em seus planos saber ao certo onde ia. Não juntou muitos haveres, para não ter o embaraço das malas a tiracolo.
Deu consigo na Anatólia, depois de uma longa viagem com muitos apeadeiros visitados. Apesar da longa jornada, as imagens apareciam-lhe difusas, distorcidas, como se tivesse vindo parar à Anatólia sem dar conta, sem saber como. Não interessava. Assim como assim, para dar conta que tinha chegado a um lugar qualquer (era a Anatólia) e não se lembrar dos lugares visitados em escala, é porque desses lugares não importava reter a existência. O lugar plausível era a Anatólia. Em Karaman. Sabia ser na Turquia, mas as pessoas diziam-lhe que estava na Anatólia.
Do idioma turco não sabia nada, uma única palavra. No lugar pestilento que arranjou para pernoitar, havia rezas amiúdes. Devia estar perto de uma mesquita, mas olhava em redor e não conseguia, de olhar afinado ao alto, encontrar o minarete que encimava as mesquitas. Talvez na Anatólia houvesse um costume diferente e as mesquitas não fossem altaneiras. As rezas e os cânticos acalmavam-no. Às vezes, adormecia. Tinha medo de cair no sono, porém. Desde que saíra da terrinha, não houve uma noite em que o sono não tivesse sido povoado por pesadelos com arciprestes, bustos de halterofilistas, árvores sem ramos, esquiadores de rio e mulheres sem rosto.
Um dia, ao almoço, um jovem meteu conversa. Entenderam-se por gestos e desenhos (que o outrora carteiro era diligente no desenho); o jovem só sabia falar turco. Foi ele que lhe ensinou a viver em Karaman. Arranjou-lhe um emprego, no hospital. Depois de alguns dias, o antigo carteiro já não se incomodava com a insalubridade do hospital nem com o tratamento boçal aos pacientes. Os sonhos mudaram: apareciam-lhe amputados, cabeças rachadas, velhos leprosos com membros aos caídos, injeções de penicilina, crianças em berraria ao serem inoculadas com vacinas, o bestunto presidente da edilidade a jogar golfe na piscina sem serventia, seringas e mais seringas.
Naquele dia, fazia três meses que chegara à Anatólia. Anotara num pequeno caderno encardido, um a um, em numeração romana, os dias na cidade. Nessa noite, o sonho foi invadido pela menina quase quarentona a quem nunca se conheceu paixão em carne e osso. Na manhã seguinte, ainda o sol estava para se erguer, pegou nos haveres e apanhou o primeiro comboio. Nem sequer se importou de saber para onde ia o comboio.

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