14.3.17

O beijo do mar e os braços abraseados


Spoon, “Hot Thoughts” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=mkxz93GohDs    
Era um daqueles dias morno, em que o tempo parecia ter-se esquecido da sua existência. Daqueles dias em que até os pensamentos circundam o próprio pensamento e o vazio se ocupa do lugar que é sua pertença. Como se estivesse refém de uma anestesia que não sabia ter sido inoculada (nem o seu fautor).
Estava diante do mar. Em perfeita rima com a letargia do dia que estava, o mar era um tapete impecavelmente raso. As ondas pareciam não pertencer ao mar – àquele mar. No areal, duas crianças (diria, irmãs) metiam as mãos na areia molhada, mesmo quando a areia me mete na boca do mar. Os olhos desviaram-se para o horizonte, onde o palco esperava pelo entardecer, vendo um altivo cargueiro estacionado, talvez à espera de vez no porto. Entre a praia e o cargueiro, um pequeno veleiro demandava outros lugares, talvez cansado daquele lugar – ou, apenas talvez, porque assim estava destinado no plano de viagem.
Apetecia-lhe sentir a água do mar. Queria tomar mão ao sortilégio das correntes que transportam as enormes massas de mar de um lugar para o outro, queria saber qual o resultado desse sortilégio na temperatura da água e como seria a reação do corpo. Em não estando preparado para uma imersão profunda no mar (não tinham sido esses os planos quando saiu de casa – nem outros quaisquer, a julgar pela inércia que tomara conta do dia), só podia avançar até aos tornozelos. Descalçou-se. Quando se pôs de pé, por perto andava um casal de namorados em pleno enlevo. Deteve-se, com o olhar meio envergonhado dirigindo-se para o casal, não fossem os namorados sentir-se trespassados na sua intimidade. Desceu a cabeça sobre os pés nus à espera do beijo do mar e, em rumorejo, perguntou se tinha memória de quando se sentira enamorado. Já fazia muito tempo. Mesmo muito tempo.
O mar frio caucionava a generosidade de um beijo no corpo que deu ao mar. O mar devolvia o arroubo da memória que deixava ir ao encontro da interrogação. Sentiu um frémito invadir os braços. Em contraste com os pés frios, fruto do beijo do mar, os braços foram absorvidos por um levantamento soalheiro que não conseguia explicar. Se mandassem os cânones da química, aos pés frios haveria de corresponder a fria parte restante do corpo. Quanto mais se demorava no beijo do mar, mais abraseados ficavam os braços. Talvez fosse um apelo, emanando das profundezas do mar, para reavivar o enamoramento.

Sem comentários: