Spoon, “Hot Thoughts”
(live), in https://www.youtube.com/watch?v=mkxz93GohDs
Era um daqueles dias morno, em que o
tempo parecia ter-se esquecido da sua existência. Daqueles dias em que até os
pensamentos circundam o próprio pensamento e o vazio se ocupa do lugar que é
sua pertença. Como se estivesse refém de uma anestesia que não sabia ter sido
inoculada (nem o seu fautor).
Estava diante do mar. Em perfeita
rima com a letargia do dia que estava, o mar era um tapete impecavelmente raso.
As ondas pareciam não pertencer ao mar – àquele mar. No areal, duas crianças
(diria, irmãs) metiam as mãos na areia molhada, mesmo quando a areia me mete na
boca do mar. Os olhos desviaram-se para o horizonte, onde o palco esperava pelo
entardecer, vendo um altivo cargueiro estacionado, talvez à espera de vez no
porto. Entre a praia e o cargueiro, um pequeno veleiro demandava outros lugares,
talvez cansado daquele lugar – ou, apenas talvez, porque assim estava destinado
no plano de viagem.
Apetecia-lhe sentir a água do mar. Queria
tomar mão ao sortilégio das correntes que transportam as enormes massas de mar
de um lugar para o outro, queria saber qual o resultado desse sortilégio na
temperatura da água e como seria a reação do corpo. Em não estando preparado
para uma imersão profunda no mar (não tinham sido esses os planos quando saiu
de casa – nem outros quaisquer, a julgar pela inércia que tomara conta do dia),
só podia avançar até aos tornozelos. Descalçou-se. Quando se pôs de pé, por
perto andava um casal de namorados em pleno enlevo. Deteve-se, com o olhar meio
envergonhado dirigindo-se para o casal, não fossem os namorados sentir-se
trespassados na sua intimidade. Desceu a cabeça sobre os pés nus à espera do
beijo do mar e, em rumorejo, perguntou se tinha memória de quando se sentira enamorado.
Já fazia muito tempo. Mesmo muito tempo.
O mar frio caucionava a generosidade
de um beijo no corpo que deu ao mar. O mar devolvia o arroubo da memória que
deixava ir ao encontro da interrogação. Sentiu um frémito invadir os braços. Em
contraste com os pés frios, fruto do beijo do mar, os braços foram absorvidos
por um levantamento soalheiro que não conseguia explicar. Se mandassem os cânones
da química, aos pés frios haveria de corresponder a fria parte restante do
corpo. Quanto mais se demorava no beijo do mar, mais abraseados ficavam os
braços. Talvez fosse um apelo, emanando das profundezas do mar, para reavivar o
enamoramento.
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