Whitney, “No Woman”, in https://www.youtube.com/watch?v=CGKN6qiDqnk
Era preciso matar tempo. Ainda tinha
dois dias pela frente antes de voltar à consulta com o perito em dores da alma.
Na noite anterior, conseguiu triunfar sobre os impulsos que o atiravam para a
rua, para outra noite de boémia. Fizera uma jura, talvez a jura mais dilacerante
de que lembrava: para não desperdiçar o que fora conquistado no consultório do
perito em dores da alma, não podia decair no vício. Assim foi. Ao início,
quando a manhã despontou (a horas tão impróprias que já nem se lembrava de como
era a luz da alvorada), exultou com a proeza. Logo depois, anuiu: não podia
amplificar a medida do acontecimento, não o podia tomar por um feito, para não
desvitalizar o significado do que alcançara. Uma noite sem os maus predicados
que vinham de trás não podia ser motivo de celebração. O que era preciso, era
anestesiar o pensamento.
Era preciso matar tempo. Tomou o
pequeno-almoço, outra coisa desconhecida dos tempos anteriores. Numa esplanada sobranceira
à baía que recebia o porto de Vladivostoque. O sol saíra de leste, onde
irrompeu, e deslocava-se da esquerda para a direita. Foi admirando o movimento
das embarcações que entravam e saíam no porto. Umas, de grande porte. Outras, sem
a mesma ambição. Vinham, invariavelmente, guiadas por rebocadores, ao leme dos
quais estavam marinheiros experimentados nas águas que levavam as embarcações
até aos ancoradouros. Sem conseguir reprimir o pensamento, notou como os
rebocadores são a metáfora que resume as aflições daqueles que perderam o
norte. Desviou-se da metáfora. O que era preciso, era anestesiar o pensamento.
Era preciso matar tempo. À sua
frente, passava gente a correr na marginal entre a esplanada e o mar parado. Era
um contraste com alcance. O mar imperador era o espelho da inércia. E as
pessoas – em particular aquelas que se exercitavam – contrariavam a ideia de
que as pessoas são propensas à indolência. A crer no quadro que passava diante
dos seus olhos, as pessoas triunfavam sobre o mar majestoso – pelo menos, na
expressão muito parcial que o mar encontrava na baía que acolhia o porto. Uma
inesperada coreografia de andorinhas, em voo rasante sobre o mar (porventura
para caçar peixe que nadava à superfície), serviu para desviar a atenção. O que
era preciso, era anestesiar o pensamento.
Era preciso matar tempo. Almoçou pela
esplanada. Pegou num jornal que alguém tinha deixado órfão na mesa do lado. O mais
certo era não perceber nada, o jornal escrito em cirílico. Confirmou. Limitou-se
a desfolhar o jornal, deitando a atenção nas fotografias para tentar, ao menos,
perceber o contexto das notícias. Putin aparecia em seis notícias. Para o jornal,
o mundo resumia-se à Rússia – não havia notícias (pelo menos suportadas em
fotografias) sobre o resto do mundo. Associou às águas do mar que estacionavam
na baía de Vladivostoque. Não podia ser bom sintoma, pois sempre lhe meteram
impressão os caciques do ensimesmamento. Por um momento, destapou o véu de uma
interrogação: não seria parte dos seus grandes males nunca ter aprendido a ter
um módico de narcisismo? Fechou a página dos pensamentos que, se viessem à tona,
não seriam atempados. O que era preciso, era anestesiar o pensamento.
Era preciso matar tempo. E anestesiar
o pensamento. Em estando farto de estar tanto tempo no mesmo lugar, decidiu ir
para o albergue. Tinha ido à biblioteca municipal e trouxe de empréstimo alguma
bibliografia sobre Vladivostoque. Que não fosse treslida a sua intenção: não tinha
nos planos demorar-se em Vladivostoque. Até à nova visita ao perito em dores da
alma, impunha-se matar o tempo. E anestesiar o pensamento, para não o despreparar
para a próxima conversa com o perito em dores da alma.
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