Bonobo (feat. Nick Murphy),
“No Reason”, in https://www.youtube.com/watch?v=ebzEEEdjHj0
O carteiro adoeceu. O correio já não
vem faz dias. Há quem sinta falta. Do correio. E do carteiro. Da posta
restante, nem que seja a correspondência para encher espaço, que outra
serventia não se retira dela.
Ao menos – assegura um velhinho,
useiro na posta restante – sempre se passa o tempo a ler qualquer coisa. Se alguém
contrapusesse que o velhinho podia tentar a literatura interessante, um livro
que desatasse as sinapses para voos mais ousados, o velhinho diria que já não
tem paciência. (Não valia a pena apurar quantos livros teria lido no tempo que
ficara para trás.)
A menina quase quarentona, despedida
da fábrica de rolamentos (que fechou as portas por falência), enquanto se
dedica ao nada fazer por ausência de trabalho, suspira pelo carteiro. Sempre que
o carteiro toca à campainha aparece toda aperaltada e com os lábios pintados
por uma enxurrada de batom, excessivamente perfumada, calçando uns sapatos com
altos saltos altos. O carteiro tem aproximadamente a mesma idade e – faz-se
constar – a que fora sua consorte fugiu para o Egito com um vendedor de
bugigangas que por uns tempos fez da região seu mercado. A menina quase
quarentona inventou uma estratégia para a visita diária do carteiro: subscreveu
resmas de coisas diversas que aparecem, à razão diária, na correspondência. A menina
quase quarentona só ainda não teve coragem de ultrapassar as insinuações
disfarçadas. O carteiro ainda não tomou conhecimento da paixoneta. Ou porque as
investidas são pouco nítidas – hipótese a desconsiderar, tamanhos os cuidados
de arranjo da menina quase quarentona. Ou porque, ainda amargurado com o desamor
que lhe calhou em azar, não quer saber de amores outros.
Faz dias que o carteiro não aparece. E
ainda ninguém teve a lucidez para ir bater à porta da sua casa, só para saber
se está doente, se precisa de auxílio. Nem a menina quase quarentona que,
eivada do habitual espírito derrotista, já teceu, na sua cabeça, a ideia de que
o carteiro lá percebeu que ela estava por ele apaixonada e: ou caiu doente à
cama, ou se acovardou e decidiu emigrar.
Um dia, alguém que já não podia
esperar mais pelo correio atrasado foi a casa do carteiro. Ninguém atendeu. Na caixa
do correio, um envelope esvoaçava, meio metido na reentrância. Em letras
gordas, estava escrito no rosto do envelope: “para quem aqui vier primeiro, é fazer o favor de ler o inserto.” (O
carteiro era conhecido por uma erudição acima da média.) O homem abriu o
envelope. Eram apenas duas frases e um post
scriptum: “Estou cansado deste lugar.
Vou para outro lugar, à aventura. Post scriptum: por favor, avisem os correios
que me demiti.”
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