17.3.17

Correio atrasado (1)


Bonobo (feat. Nick Murphy), “No Reason”, in https://www.youtube.com/watch?v=ebzEEEdjHj0    
O carteiro adoeceu. O correio já não vem faz dias. Há quem sinta falta. Do correio. E do carteiro. Da posta restante, nem que seja a correspondência para encher espaço, que outra serventia não se retira dela.
Ao menos – assegura um velhinho, useiro na posta restante – sempre se passa o tempo a ler qualquer coisa. Se alguém contrapusesse que o velhinho podia tentar a literatura interessante, um livro que desatasse as sinapses para voos mais ousados, o velhinho diria que já não tem paciência. (Não valia a pena apurar quantos livros teria lido no tempo que ficara para trás.)
A menina quase quarentona, despedida da fábrica de rolamentos (que fechou as portas por falência), enquanto se dedica ao nada fazer por ausência de trabalho, suspira pelo carteiro. Sempre que o carteiro toca à campainha aparece toda aperaltada e com os lábios pintados por uma enxurrada de batom, excessivamente perfumada, calçando uns sapatos com altos saltos altos. O carteiro tem aproximadamente a mesma idade e – faz-se constar – a que fora sua consorte fugiu para o Egito com um vendedor de bugigangas que por uns tempos fez da região seu mercado. A menina quase quarentona inventou uma estratégia para a visita diária do carteiro: subscreveu resmas de coisas diversas que aparecem, à razão diária, na correspondência. A menina quase quarentona só ainda não teve coragem de ultrapassar as insinuações disfarçadas. O carteiro ainda não tomou conhecimento da paixoneta. Ou porque as investidas são pouco nítidas – hipótese a desconsiderar, tamanhos os cuidados de arranjo da menina quase quarentona. Ou porque, ainda amargurado com o desamor que lhe calhou em azar, não quer saber de amores outros.
Faz dias que o carteiro não aparece. E ainda ninguém teve a lucidez para ir bater à porta da sua casa, só para saber se está doente, se precisa de auxílio. Nem a menina quase quarentona que, eivada do habitual espírito derrotista, já teceu, na sua cabeça, a ideia de que o carteiro lá percebeu que ela estava por ele apaixonada e: ou caiu doente à cama, ou se acovardou e decidiu emigrar.
Um dia, alguém que já não podia esperar mais pelo correio atrasado foi a casa do carteiro. Ninguém atendeu. Na caixa do correio, um envelope esvoaçava, meio metido na reentrância. Em letras gordas, estava escrito no rosto do envelope: “para quem aqui vier primeiro, é fazer o favor de ler o inserto.” (O carteiro era conhecido por uma erudição acima da média.) O homem abriu o envelope. Eram apenas duas frases e um post scriptum: “Estou cansado deste lugar. Vou para outro lugar, à aventura. Post scriptum: por favor, avisem os correios que me demiti.

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