Tame Impala, “Mind Mischief”,
in https://www.youtube.com/watch?v=BgK_Er7WZVg
O consultório era um lugar
impecavelmente limpo. Contrastava com os lugares que já visitara em Vladivostoque,
com a imundície a imperar. O lugar tinha uma decoração sóbria, com pouco mobiliário,
mas ao mesmo tempo acolhedora. Na receção, a funcionária avisou que “o doutor estava atrasado qualquer coisa.”
Recostou-se na cadeira e fechou os olhos, revendo mentalmente o que tinha
preparado para contar ao perito em dores da alma. Mal sabia que o guião não seria
cumprido. O perito percebeu que ele trazia um discurso ensaiado e alterou a
esquadria da conversa. Desviou o assunto, enxertou assuntos improváveis no meio
da conversa, por mais que o carteiro tresmalhado se sentisse perplexo com a
orientação da consulta. Só algum tempo depois, o perito começou a desfiar o rosário
de lamentações do carteiro.
-
Diga-me lá, ao certo, quais são os seus sobressaltos. O que o traz aqui?
-
Ele é tanta coisa que nem sei por onde começar.
-
Há sempre um começo. Mesmo que não comece pelo que os dois mais tarde julgaríamos
ser o começo acertado, não importa. O que interessa é começar a remexer no
novelo das apoquentações.
-
Sou um fugitivo arrependido. Não me entenda mal: não sou um foragido da lei. É
pior: fujo de mim mesmo, das minhas raízes, das pessoas que sempre estiveram no
meu entorno, do afeto, do amor, dos desafios que me tiram o sono, do sono que
fermenta amiúdes pesadelos. Estou metido num paradoxo: desde que parti para
longe, sem rumo definido, tenho levado uma vida de desvario, de vícios, como
nunca dantes experimentei. Quando retomo alguma lucidez, sinto a angústia a
assomar à boca. Nessa altura, só quero regressar a casa. Depressa caio no vício
e, em perdendo o juízo mercê dos vícios de que fico refém, despenho-me numa
voragem que me tem levado para lugares cada vez mais distantes de casa. Quero
regressar e, ao mesmo tempo, quero encontrar um cais provisório – sempre provisório
– que seja ainda mais longe de casa.
-
Preciso de entender melhor as contradições em que se debate. Importa-se de
elaborar?
-
Tudo se resume à fuga. De tudo. A começar de mim mesmo, como se fosse possível
extrair-me de dentro deste corpo, desta alma, e viver uma vida diferente, ser a
personificação de uma alteridade que seja, ao mesmo tempo, a recusa do eu que
sou. Fugi porque me cansei. Cansei-me de ser carteiro. Cansei-me da comiseração
dos meus conterrâneos quando o infortúnio me tocou (o desamor). Cansei-me do
desamor. Cansei-me da impulsividade, da irascibilidade. Cansei-me da
desesperança por causa de todos os maus instintos que vogavam por dentro de
mim. Cansei-me de distribuir correspondência postal pelas casas das pessoas e
de ser amigavelmente tratado por muitas delas, como se fosse possível as
pessoas serem amigas de outras pessoas apenas pelo vínculo circunstancial do
correio que lhes bate simpaticamente à porta. Cansei-me de uma rapariga ainda
mais adestrada no desamor e que se insinuava desastradamente ao saber-me sem a consorte
que me largou de mão. Cansei-me de pensar. Cansei-me de esperar. De esperar sem
saber o quê. Cansei-me de sufragar a bondade que julgo ser-me inata quando vejo
à volta a hipocrisia superar o demais, transfigurando as coisas más em coisas
boas. Cansei-me do fingimento, dos fingimentos. Cansei-me da boçalidade das
pessoas – e cansei-me da minha própria boçalidade, a páginas tantas, admitindo
o mau efeito de contágio, sem nada fazer para o recusar. E, cansado de tudo
isto, atribuindo o cansaço ao cais gasto que era o lugar onde vivia e as
pessoas suas residentes, decidi fugir. Mas agora estou cansado de fugir. Estou cansado
dos vícios em que caí. Estou cansado do álcool constante, das drogas que nunca
experimentara e que agora são assíduas, de alguma devassidão de que me consigo
lembrar. Não sei se passei a pertencer aos apóstolos da frivolidade – e não sei
se, em sendo esse o caso, a frivolidade pertence às coisas que devem ser
renegadas. Estou cansado de fugir, mas depressa se exaurem as forças para
empreender o regresso a casa. Já tentei, e dei comigo a encontrar ancoradouro ainda
mais distante. Estou cansado de sentir que a casa que, às vezes, volto a
desejar é uma miragem. Estou cansado de estar cansado e de todos estes
paradoxos que me envenenam o sangue. Acho que já nem sequer consigo esboçar um
pensamento linear. Não sei o que quero.
-
E, todavia, veio procurar uma ajuda. Isso contradiz a sua última afirmação. Sabe,
ao menos, que quer uma ajuda. Nem que seja alguém que o ouça e que, sendo ouvinte,
dê o conforto de saber que não está só e que, desse modo, pode organizar os
pensamentos outra vez.
-
Procurei-o por ser um especialista em dores da alma. E, admito, porque soube
que sendo formado numa universidade australiana, seria falante do idioma inglês.
-
A sua transparência não me incomoda. Pelo contrário, acho louvável.
-
Se me diz que preciso de alguém que me ouça, que seja o depositário das
lamentações que me consomem, digo-lhe que nesta demanda errática já deparei com
muita gente que desempenhou esse papel. Não será bem disso que estou à procura.
-
Bem sei. Quer alguém que o saiba ouvir e, ao mesmo tempo, sendo um especialista
das dores da alma (como lhe chama) consiga saber onde residem os males que o
incomodam.
-
Será mais ou menos isso.
-
Esta primeira conversa foi um bom começo. Tirei umas notas e vou interiorizar o
que me disse. À saída, marque consulta para daqui a três dias, à mesma hora. Até
lá, deixo dois desafios. Primeiro, tente não andar com a cabeça às voltas. Pensar
demais embacia a sua perceção das coisas. Ficará menos capaz para saber o que
sente. Menos capaz para exteriorizar o que o sobressalta. Segundo, evite, a
todo o custo, os vícios de que falou. Nem que tenha de se refugiar em casa, por
mais que ser eremita temporário pareça uma tortura.
Despediu-se com um frouxo aperto de mão
e seguiu as instruções, marcando a consulta com a funcionária da receção,
perante a indiferença desta. Aquele tempo e a conversa havida foram um bálsamo.
Ao descer à rua, sentiu uma leveza no ar de que já não se lembrava. Mal podia
esperar por daqui a três dias. Mas ainda faltavam três dias.
Sem comentários:
Enviar um comentário