27.3.17

Correio atrasado (7)


Tame Impala, “Mind Mischief”, in https://www.youtube.com/watch?v=BgK_Er7WZVg    
O consultório era um lugar impecavelmente limpo. Contrastava com os lugares que já visitara em Vladivostoque, com a imundície a imperar. O lugar tinha uma decoração sóbria, com pouco mobiliário, mas ao mesmo tempo acolhedora. Na receção, a funcionária avisou que “o doutor estava atrasado qualquer coisa.” Recostou-se na cadeira e fechou os olhos, revendo mentalmente o que tinha preparado para contar ao perito em dores da alma. Mal sabia que o guião não seria cumprido. O perito percebeu que ele trazia um discurso ensaiado e alterou a esquadria da conversa. Desviou o assunto, enxertou assuntos improváveis no meio da conversa, por mais que o carteiro tresmalhado se sentisse perplexo com a orientação da consulta. Só algum tempo depois, o perito começou a desfiar o rosário de lamentações do carteiro.
- Diga-me lá, ao certo, quais são os seus sobressaltos. O que o traz aqui?
- Ele é tanta coisa que nem sei por onde começar.
- Há sempre um começo. Mesmo que não comece pelo que os dois mais tarde julgaríamos ser o começo acertado, não importa. O que interessa é começar a remexer no novelo das apoquentações.
- Sou um fugitivo arrependido. Não me entenda mal: não sou um foragido da lei. É pior: fujo de mim mesmo, das minhas raízes, das pessoas que sempre estiveram no meu entorno, do afeto, do amor, dos desafios que me tiram o sono, do sono que fermenta amiúdes pesadelos. Estou metido num paradoxo: desde que parti para longe, sem rumo definido, tenho levado uma vida de desvario, de vícios, como nunca dantes experimentei. Quando retomo alguma lucidez, sinto a angústia a assomar à boca. Nessa altura, só quero regressar a casa. Depressa caio no vício e, em perdendo o juízo mercê dos vícios de que fico refém, despenho-me numa voragem que me tem levado para lugares cada vez mais distantes de casa. Quero regressar e, ao mesmo tempo, quero encontrar um cais provisório – sempre provisório – que seja ainda mais longe de casa.
- Preciso de entender melhor as contradições em que se debate. Importa-se de elaborar?
- Tudo se resume à fuga. De tudo. A começar de mim mesmo, como se fosse possível extrair-me de dentro deste corpo, desta alma, e viver uma vida diferente, ser a personificação de uma alteridade que seja, ao mesmo tempo, a recusa do eu que sou. Fugi porque me cansei. Cansei-me de ser carteiro. Cansei-me da comiseração dos meus conterrâneos quando o infortúnio me tocou (o desamor). Cansei-me do desamor. Cansei-me da impulsividade, da irascibilidade. Cansei-me da desesperança por causa de todos os maus instintos que vogavam por dentro de mim. Cansei-me de distribuir correspondência postal pelas casas das pessoas e de ser amigavelmente tratado por muitas delas, como se fosse possível as pessoas serem amigas de outras pessoas apenas pelo vínculo circunstancial do correio que lhes bate simpaticamente à porta. Cansei-me de uma rapariga ainda mais adestrada no desamor e que se insinuava desastradamente ao saber-me sem a consorte que me largou de mão. Cansei-me de pensar. Cansei-me de esperar. De esperar sem saber o quê. Cansei-me de sufragar a bondade que julgo ser-me inata quando vejo à volta a hipocrisia superar o demais, transfigurando as coisas más em coisas boas. Cansei-me do fingimento, dos fingimentos. Cansei-me da boçalidade das pessoas – e cansei-me da minha própria boçalidade, a páginas tantas, admitindo o mau efeito de contágio, sem nada fazer para o recusar. E, cansado de tudo isto, atribuindo o cansaço ao cais gasto que era o lugar onde vivia e as pessoas suas residentes, decidi fugir. Mas agora estou cansado de fugir. Estou cansado dos vícios em que caí. Estou cansado do álcool constante, das drogas que nunca experimentara e que agora são assíduas, de alguma devassidão de que me consigo lembrar. Não sei se passei a pertencer aos apóstolos da frivolidade – e não sei se, em sendo esse o caso, a frivolidade pertence às coisas que devem ser renegadas. Estou cansado de fugir, mas depressa se exaurem as forças para empreender o regresso a casa. Já tentei, e dei comigo a encontrar ancoradouro ainda mais distante. Estou cansado de sentir que a casa que, às vezes, volto a desejar é uma miragem. Estou cansado de estar cansado e de todos estes paradoxos que me envenenam o sangue. Acho que já nem sequer consigo esboçar um pensamento linear. Não sei o que quero.
- E, todavia, veio procurar uma ajuda. Isso contradiz a sua última afirmação. Sabe, ao menos, que quer uma ajuda. Nem que seja alguém que o ouça e que, sendo ouvinte, dê o conforto de saber que não está só e que, desse modo, pode organizar os pensamentos outra vez.
- Procurei-o por ser um especialista em dores da alma. E, admito, porque soube que sendo formado numa universidade australiana, seria falante do idioma inglês.
- A sua transparência não me incomoda. Pelo contrário, acho louvável.
- Se me diz que preciso de alguém que me ouça, que seja o depositário das lamentações que me consomem, digo-lhe que nesta demanda errática já deparei com muita gente que desempenhou esse papel. Não será bem disso que estou à procura.
- Bem sei. Quer alguém que o saiba ouvir e, ao mesmo tempo, sendo um especialista das dores da alma (como lhe chama) consiga saber onde residem os males que o incomodam.
- Será mais ou menos isso.
- Esta primeira conversa foi um bom começo. Tirei umas notas e vou interiorizar o que me disse. À saída, marque consulta para daqui a três dias, à mesma hora. Até lá, deixo dois desafios. Primeiro, tente não andar com a cabeça às voltas. Pensar demais embacia a sua perceção das coisas. Ficará menos capaz para saber o que sente. Menos capaz para exteriorizar o que o sobressalta. Segundo, evite, a todo o custo, os vícios de que falou. Nem que tenha de se refugiar em casa, por mais que ser eremita temporário pareça uma tortura.
Despediu-se com um frouxo aperto de mão e seguiu as instruções, marcando a consulta com a funcionária da receção, perante a indiferença desta. Aquele tempo e a conversa havida foram um bálsamo. Ao descer à rua, sentiu uma leveza no ar de que já não se lembrava. Mal podia esperar por daqui a três dias. Mas ainda faltavam três dias.

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