7.3.17

Ministério dos arrependimentos


New Order, “Regret”, in https://www.youtube.com/watch?v=71ZHVmSuBJM    
O governo tinha de inovar. Andavam na sua órbita uns jovens turcos que conseguiam levar a água ao moinho com ideias que tinham aprendido lá fora, enquanto andaram a estudar para serem doutores por extenso. O chefe do governo andava numa fase de abertura às novas ideias – era preciso fraturar as consciências, remexê-las por dentro para reaprenderem a olhar para o mundo com outras lentes.
(Havia quem apostasse que o chefe do governo dava guarida a estes jovens turcos apenas para meter em sentido, dentro do aparelho do partido, alguns senadores e generais de elevada patente. Mas depressa surgiam desmentidos, a páginas meias com insultos espalhados com precisão cirúrgica vertendo-se sobre os autores dos rumores, nem que fosse para desviar as atenções.)
A propósito de uma remodelação do governo (que estava a meio do mandato e era tempo de limpar algum sebo sobrante), o chefe do governo tomou uma decisão que apanhou de surpresa até os mais chegados (mas não os jovens turcos): seria criado, com efeitos imediatos, o ministério dos arrependimentos. A política tinha de estar aberta à sensibilidade dos cidadãos. Tem de ser feita para agradar os governados. Eles têm de sentir que há canais de acesso ao poder, que a política não é uma coisa que se afasta para os seus antípodas depois de os andarem a seduzir durante campanhas eleitorais.
Sendo o país um lugar miticamente melancólico, que o fado até é o porta-estandarte cultural (e com a elevada carga melancólica que o fado carrega), e como o chefe do governo notava, nas suas andanças pelas ruas, que o povo andava tristonho (exceto nas visitas onde sua excelência inaugurava coisas, pois aí só havia rostos efusivos entre o séquito e as criancinhas que iam obedientemente à cerimónia para fazerem número), o chefe de governo decidiu que teria de existir um ministério onde as pessoas pudessem depositar os arrependimentos. Para ver se, expurgados os arrependimentos desta forma, as pessoas eram capazes de se libertar de toda a carga melancólica e o país, enfim, se tornava um antro de felicidade. O ministério dos arrependimentos era uma versão adaptada do livro de reclamações. Com duas diferenças: os arrependimentos lavrados no ministério da tutela não seria queixas contra terceiras pessoas; e a simples deposição do auto de arrependimento tinha a garantia, com a chancela do presciente chefe do governo, de que os arrependimentos assim lavrados seriam depostos do horizonte mental dos cidadãos.
O que o chefe do governo não contou foi que os psiquiatras e os psicólogos congeminassem uma estratégia para boicotar a ação do ministério dos arrependimentos, acusando o governo de praticar concorrência desleal. E também não contou que o sindicato dos fadistas fizesse uma greve, deixando a populaça à míngua de fado cantado durante meses a fio, pois a tentativa de erradicação da melancolia dissolvia a fonte de inspiração dos fadistas.

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