New Order, “Regret”, in https://www.youtube.com/watch?v=71ZHVmSuBJM
O governo tinha de inovar. Andavam na
sua órbita uns jovens turcos que conseguiam levar a água ao moinho com ideias
que tinham aprendido lá fora, enquanto andaram a estudar para serem doutores
por extenso. O chefe do governo andava numa fase de abertura às novas ideias –
era preciso fraturar as consciências, remexê-las por dentro para reaprenderem a
olhar para o mundo com outras lentes.
(Havia quem apostasse que o chefe do
governo dava guarida a estes jovens turcos apenas para meter em sentido, dentro
do aparelho do partido, alguns senadores e generais de elevada patente. Mas
depressa surgiam desmentidos, a páginas meias com insultos espalhados com precisão
cirúrgica vertendo-se sobre os autores dos rumores, nem que fosse para desviar
as atenções.)
A propósito de uma remodelação do
governo (que estava a meio do mandato e era tempo de limpar algum sebo sobrante),
o chefe do governo tomou uma decisão que apanhou de surpresa até os mais
chegados (mas não os jovens turcos): seria criado, com efeitos imediatos, o
ministério dos arrependimentos. A política tinha de estar aberta à
sensibilidade dos cidadãos. Tem de ser feita para agradar os governados. Eles têm
de sentir que há canais de acesso ao poder, que a política não é uma coisa que
se afasta para os seus antípodas depois de os andarem a seduzir durante
campanhas eleitorais.
Sendo o país um lugar miticamente
melancólico, que o fado até é o porta-estandarte cultural (e com a elevada
carga melancólica que o fado carrega), e como o chefe do governo notava, nas
suas andanças pelas ruas, que o povo andava tristonho (exceto nas visitas onde sua
excelência inaugurava coisas, pois aí só havia rostos efusivos entre o séquito
e as criancinhas que iam obedientemente à cerimónia para fazerem número), o
chefe de governo decidiu que teria de existir um ministério onde as pessoas
pudessem depositar os arrependimentos. Para ver se, expurgados os
arrependimentos desta forma, as pessoas eram capazes de se libertar de toda a carga
melancólica e o país, enfim, se tornava um antro de felicidade. O ministério
dos arrependimentos era uma versão adaptada do livro de reclamações. Com duas
diferenças: os arrependimentos lavrados no ministério da tutela não seria
queixas contra terceiras pessoas; e a simples deposição do auto de
arrependimento tinha a garantia, com a chancela do presciente chefe do governo,
de que os arrependimentos assim lavrados seriam depostos do horizonte mental
dos cidadãos.
O que o chefe do governo não contou
foi que os psiquiatras e os psicólogos congeminassem uma estratégia para
boicotar a ação do ministério dos arrependimentos, acusando o governo de
praticar concorrência desleal. E também não contou que o sindicato dos fadistas
fizesse uma greve, deixando a populaça à míngua de fado cantado durante meses a
fio, pois a tentativa de erradicação da melancolia dissolvia a fonte de
inspiração dos fadistas.
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