Radiohead, “Lotus Flower”,
in https://www.youtube.com/watch?v=cfOa1a8hYP8
As ideias inesperadas continuavam a
irromper, contra a teoria das probabilidades, contra os pilares da normalidade
por tantos deificada. O chefe do governo (outra vez aconselhado pelos ortodoxos
jovens turcos) ousou pensar no ministério do desarmamento. O país seria
expurgado de armas e de forças militares. Disse-o, em tom solene, em comunicação
ao país através da televisão. Como sabia tratar-se de matéria sensível, passou
de imediato às explicações.
Lembrou que deixou de haver ameaças
externas à integridade do país. Pediu aos cidadãos para reaprenderem o conceito
de soberania, pois não ela estava em causa (nem a sobrevivência do país) se
fossem extintas (como seriam) as forças armadas e deixasse de haver militares a
ostentar o garbo do fardamento e das divisas à lapela. Pediu aos concidadãos que
aterrassem os pés no solo: o país que ele comandava não era atrativo para presuntivas
invasões perpetradas por outras nações. E para acautelar possíveis teorias da
conspiração que surgissem em contraposição do (na maneira de ver dos críticos
da medida) lírico pacifismo do chefe do governo, esbracejando os críticos com ameaças
dos que espalham terrorismo amiúde, o chefe do governo sossegou quem o ouvia:
tinha em sua posse estudos credíveis que denegavam a possibilidade de o país
ser vítima de ataques terroristas. Outra vez a retórica dos pés assentes no chão:
ninguém, no seu bom senso, podia acreditar que os profissionais do terror
escolhessem um país insignificante como alvo. A existir, o ataque não teria
contundência. E se o país ficasse desmilitarizado, menos prováveis seriam esses
ataques: os profissionais do terror quase não olham a meios para atingirem os
fins – é sabido –, mas atacar uma nação indefesa estava para além da escassa ética
dos terroristas.
O chefe do governo informou mais: os
quarteis iam ser transformados em parques temáticos, uns para crianças, outros
para adolescentes, outros para recuperação de toxicodependentes. As armas não
seriam vendidas, seriam destinadas a uma pira enorme para serem destruídas pela
combustão do fogo. Antecipando a preocupação de muitos com o destino de tantos
militares condenados ao desemprego, o chefe do governo adiantou que se tratava
de um problema a prazo (como quem diz: com o passar do tempo os militares
descontinuados acabam por morrer) e, enquanto o tempo não o resolvesse, os militares
desapossados da farda e da arma iam ser transferidos para as forças policiais.
Foi então que a população, pelo menos
a que não estava distraída, percebeu tudo. O ministério do desarmamento podia
ser uma comissão liquidatária das forças armadas, mas a transfusão de militares
para as polícias atestava os pergaminhos do chefe do governo. A prova dos nove
estava à frente dos olhos, numa notícia quase encapotada e simultânea do anúncio
do ministério do desarmamento: o ministério que tutela as polícias ia passar a
receber um montão de dinheiro do orçamento.
Os cidadãos não distraídos, os que não
caíram no logro do pacifismo remediado do chefe do governo, começaram a acordar
preocupados: ele seriam tantos os polícias a pulular por aí.
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