2.3.17

Um piano só com as teclas brancas

    
Einstürzende Neubauten, “Ein Leichtes Leises Saeuseln”, in https://www.youtube.com/watch?v=CXtMvFY7bP0&spfreload=5
A música ecoava, distinta, com a clareza de uma alta fidelidade robusta. Entrava pelos ouvidos e aclarava o espírito, sem o espartilho das alcáçovas estilhaçadas pelos desenganos do tempo completo.
Se fosse no dia seguinte, tinha a certeza que não conseguia reproduzir a música. Tinha a certeza que não podia assegurar se já a tinha ouvido, mesmo que essa fosse a música que o encantara na véspera. Não sabia se eram violinos, ou harpas, ou instrumentos de sopro que dedilhavam as estrofes musicais nos interstícios do tempo exposto aos sons contidos na música. Talvez fosse um piano. Singelo, matraqueado por dedos suaves, sedosos, como a têmpera de quem compusera a música. Um piano, porventura, só com as teclas brancas.
Não sabia de onde provinha a música; de tão clara e audível, dir-se-ia que por perto se escondia uma potente alta fidelidade, com colunas de alta tecnologia, tão cristalina ecoava a música no amparo do tempo. Mas tudo em redor era paisagem deserta, só as estevas do planalto a fazerem companhia aos rochedos amontoados aleatoriamente. Talvez estivesse a sonhar com uma música escutada algures e a repristinasse da mais funda cave onde se albergavam as memórias recônditas. Aliás, às vezes, supunha ser lídimo compositor – apesar de não saber ler uma pauta musical, apesar de não ter formação musical; depois, descobria que a propensão para a composição musical era sinal da fronteira entre o estado consciente e o umbral do sono, quando se torna difícil saber onde fica o limite da consciência, entretanto já franqueado pelos humores do sono, e uns sonhos bizarros que invadem a paisagem mental.
O que era factual, era a ignorância musical. E, todavia, estava convencido que podia ser o autor daquela música aveludada que alisava os pensamentos à medida que arroteava o planalto. Tempos depois, conseguiu desfazer a confusão quando ouviu a música no rádio do automóvel. Ficou à espera que a locutora prestasse informação sobre a autoria e o nome da música. Em vão. Ela ficou em silêncio e avançou para a música seguinte. Naquela altura, ainda não havia Shazam.
Continuava, contudo, seguro que a música era tocada num piano só com as teclas brancas. Era uma daquelas certezas que se funda num instinto que não se escora na razão visível.

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