22.3.17

Correio atrasado (4)


Protomartyr, “Clandestine Time”, in https://www.youtube.com/watch?v=TbVlBFuEzR8    
Insistiu com o funcionário dos caminhos de ferro:
- Corremos atrás do tempo, sabendo de antemão que se trata de uma louca corrida que está perdida à partida.
O homem limpou as rugas com a luva gasta e respondeu que não sabia o que ele pretendia dizer com aquela frase.
Na noite fria de Tomsk, no pináculo do inverno, os dois coincidiram ao balcão de um bar. O funcionário dos caminhos de ferro, notando como o dantes carteiro estava enregelado, meteu conversa:
- De onde és?
- Portugal. Sabes onde fica?
- Sei. A minha cunhada tem uma prima com familiares em Portugal.
- Pois...andam por lá muitos emigrantes russos e ucranianos – disparou, absorto, antes de discernir como tinha sida uma resposta desastrada (pela ideia de que os imigrantes eram de segunda categoria e por não se ter lembrado que russos e ucranianos andavam metidos numa guerra.) O russo não se incomodou.
- Vê-se que de onde vens as pessoas não estão habituadas a este frio.
- De facto. Nunca pensei que fosse tão difícil. Que temperatura estará lá fora?
- Vinte e três graus negativos. Como está vento, parece que se sente ainda mais frio. Dou-te um conselho: bebe dois ou três copos de vodca. Sentirás um alívio gradual do frio.
Algum tempo depois, já iam no quarto vodca, a conversa continuava algo atordoada pelo álcool. Foi quando o outrora carteiro evocou a sobranceria do tempo e de como somos seus reféns. Como o russo não terá seguido o raciocínio, o carteiro teve de elaborar:
- Digo que somos constantemente derrotados pelo tempo. Mesmo quando nos julgamos penhores de proezas, elas consomem-se no instante banal do tempo que não conseguimos emoldurar nas mãos. E depois, somos intérpretes dos nossos próprios ardis. Desaproveitamos o que nos é dado com um punhal cravado. Se julgamos que o punhal é cravado no tempo, estamos errados: a ferida é autoinfligida.
- Podes emoldurar os pedaços de tempo que te sejam congruentes na imaterialidade da memória. Dessa, és o único guardião. Podes, dessa forma, contornar as invetivas do tempo. Serás o único tutor do tempo que for de interesse consagrar.
- Temo que isso nos faça descair para a sublimação do passado, destronando a utilidade do tempo ainda por fruir.
- Não te esqueças que o jogo das impossibilidades nos leva a escolhas. Não podemos fazer coincidir na mesma esquadria palcos que operam em dimensões diferentes. É quando temos de avalizar uma escolha. E encarnar os efeitos que ela transporta.
O carteiro despediu-se do funcionário dos caminhos de ferro:
- É tarde. Estou cansado.
Friamente, virou-lhe as costas sem estender a mão. Nem esboçou um agradecimento – e se era devido o agradecimento, pois a conversa fizera soar algumas luzes teimosamente precárias. As palavras trocadas serviram para enxugar alguns paradoxos que impediam a consagração de interrogações importantes. Talvez o que fosse fuga, mesmo que não admitida, representasse a asfixia de um tempo afinal não enjeitado.
Meteu-se ao caminho, sob uma tempestade de neve que impedia a lucidez. No albergue, caiu no sono sem tempo para amadurecer pensamentos sobre aquela conversa regada pelo vodca.

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