Protomartyr, “Clandestine Time”,
in https://www.youtube.com/watch?v=TbVlBFuEzR8
Insistiu com o funcionário dos
caminhos de ferro:
-
Corremos atrás do tempo, sabendo de antemão que se trata de uma louca corrida
que está perdida à partida.
O homem limpou as rugas com a luva gasta
e respondeu que não sabia o que ele pretendia dizer com aquela frase.
Na noite fria de Tomsk, no pináculo
do inverno, os dois coincidiram ao balcão de um bar. O funcionário dos caminhos
de ferro, notando como o dantes carteiro estava enregelado, meteu conversa:
-
De onde és?
-
Portugal. Sabes onde fica?
-
Sei. A minha cunhada tem uma prima com familiares em Portugal.
-
Pois...andam por lá muitos emigrantes russos e ucranianos – disparou, absorto, antes de
discernir como tinha sida uma resposta desastrada (pela ideia de que os
imigrantes eram de segunda categoria e por não se ter lembrado que russos e ucranianos
andavam metidos numa guerra.) O russo não se incomodou.
-
Vê-se que de onde vens as pessoas não estão habituadas a este frio.
-
De facto. Nunca pensei que fosse tão difícil. Que temperatura estará lá fora?
-
Vinte e três graus negativos. Como está vento, parece que se sente ainda mais
frio. Dou-te um conselho: bebe dois ou três copos de vodca. Sentirás um alívio
gradual do frio.
Algum tempo depois, já iam no quarto
vodca, a conversa continuava algo atordoada pelo álcool. Foi quando o outrora
carteiro evocou a sobranceria do tempo e de como somos seus reféns. Como o
russo não terá seguido o raciocínio, o carteiro teve de elaborar:
-
Digo que somos constantemente derrotados pelo tempo. Mesmo quando nos julgamos
penhores de proezas, elas consomem-se no instante banal do tempo que não
conseguimos emoldurar nas mãos. E depois, somos intérpretes dos nossos próprios
ardis. Desaproveitamos o que nos é dado com um punhal cravado. Se julgamos que
o punhal é cravado no tempo, estamos errados: a ferida é autoinfligida.
-
Podes emoldurar os pedaços de tempo que te sejam congruentes na imaterialidade
da memória. Dessa, és o único guardião. Podes, dessa forma, contornar as invetivas
do tempo. Serás o único tutor do tempo que for de interesse consagrar.
-
Temo que isso nos faça descair para a sublimação do passado, destronando a
utilidade do tempo ainda por fruir.
-
Não te esqueças que o jogo das impossibilidades nos leva a escolhas. Não
podemos fazer coincidir na mesma esquadria palcos que operam em dimensões
diferentes. É quando temos de avalizar uma escolha. E encarnar os efeitos que
ela transporta.
O carteiro despediu-se do funcionário
dos caminhos de ferro:
-
É tarde. Estou cansado.
Friamente, virou-lhe as costas sem
estender a mão. Nem esboçou um agradecimento – e se era devido o agradecimento,
pois a conversa fizera soar algumas luzes teimosamente precárias. As palavras
trocadas serviram para enxugar alguns paradoxos que impediam a consagração de
interrogações importantes. Talvez o que fosse fuga, mesmo que não admitida,
representasse a asfixia de um tempo afinal não enjeitado.
Meteu-se ao caminho, sob uma
tempestade de neve que impedia a lucidez. No albergue, caiu no sono sem tempo
para amadurecer pensamentos sobre aquela conversa regada pelo vodca.
Sem comentários:
Enviar um comentário