29.3.17

Correio atrasado (9)


Nicolas Jaar, “No”, in https://www.youtube.com/watch?v=xw_aLIsEZhc    
O corpo desatado podia fazer o que apetecesse. Sem freios. Sem convenções. Mesmo sem saber com a antecedência de saber o que apeteceria. Era como se não houvesse limites, nem os das leis da física, para o corpo que deixara de estar estremunhado, letárgico num lençol que o envolvia em forma de atadura. Podia mergulhar nas águas profundas e, numa demorada apneia, passear pelas profundezas e regressar à superfície com o corpo seco. Podia estar dias a fio sem cair no sono. Podia voar sem a atalaia de deuses, mesmo na ausência de asas. Era como se passasse a ser deus em pessoa própria. Sempre aprendeu que deus tudo consegue.
Nestes preparos, encontrou-se no fundo do mar, onde a profundeza já era tanta que rareava a luz do sol, onde as águas já eram frias a ponto da hipotermia. Observou os peixes, a cadeia alimentar, os corais que assentavam na areia fina e escura – tão escura que dava para entender que não estava longe de um vulcão submerso. Confirmou a existência de sereias: nesta demanda, cruzou-se com cinco diferentes sereias. (Confirmou serem diferentes as sereias, pois as caudas tinham cores diferentes, o mesmo sucedendo com os seus cabelos – a menos que tudo não passasse de uma ilusão de ótica, ou que as sereias fossem a personificação de entidades malévolas que se insinuavam junto dele, com propósitos inconfessáveis de onde resultaria grave dano para si.) Ao início, esboçou uma aproximação. Recuou. Não queria saber o que as sereias tinham para contar. De certeza que era um ardil. Não podia ser vítima da ingenuidade, ou da soberba. Mais valia acionar a desconfiança metódica. Ao menos, extrair-se-ia do mar com a certeza de que as sereias existem. O mesmo não podia dizer de deus.
Também encontrou uma nau antiga naufragada. Deambulou pelas suas entranhas abandonadas, em ruínas. Havia pedaços de madeira que se estilhaçavam mal pousava os pés, mesmo que o gesto fosse suave e os pés não assentassem com a força toda. Dizem as lendas que as embarcações naufragadas escondem tesouros. Ou fantasmas. Ou fantasmas que zelam pelos tesouros sepultados. Não deu grande crédito às lendas. Avançou sem medo pelo interior da nau. Também não viu esqueletos – outro presságio anotado nas lendas. Sem querer, trespassou com os pés um suporte do mastro que ainda estava, por milagre, intacto, impassível à erosão. O mastro perdeu a sua sumptuosidade e esfrangalhou-se em cima do convés, que, por sua vez, abateu com fragor. Por pouco, não foi atingido pelos destroços e pela nuvem de pó que sobejou do incidente. Preferiu deixar o lugar, não fossem ocorrer males maiores.
De repente, uma das sereias nadou em círculos, cercando-o. Não percebia se a atitude era amistosa, ou se era prenúncio de um ataque. Não demorou a perceber as intenções. O olhar enfurecido da sereia, o seu rabear contundente, eram sinal das intenções. Ficou parado no mesmo lugar, à espera de ver o que ia acontecer. A sereia lançou uns dardos flamejantes que explodiam ao contacto com a areia. Não sabia se ela não acertava por desmazelo, ou se era de propósito. As outras quatro sereias juntaram-se ao cerco, com a mesma atitude iracunda e inamistosa. Continuou paralisado, como se algo impedisse os movimentos – queria fugir, mas não era capaz. Estava à mercê das sereias. Já ajoelhado, enquanto elas adejavam sobre a sua cabeça tombada, prolongando a humilhação, à espera da estocada final.
Acordou em sobressalto, os lençóis encharcados em suor. Era só um pesadelo. Tinha de o contar no dia seguinte, quando fosse ao consultório do perito em dores da alma. Uma dupla interrogação subiu à boca de cena: estaria transformado num misógino? E, afinal, deus existiria? (Pois talvez tivesse sido ele a salvá-lo do tonitruante pesadelo.)

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