Nicolas Jaar, “No”, in https://www.youtube.com/watch?v=xw_aLIsEZhc
O corpo desatado podia fazer o que
apetecesse. Sem freios. Sem convenções. Mesmo sem saber com a antecedência de
saber o que apeteceria. Era como se não houvesse limites, nem os das leis da física,
para o corpo que deixara de estar estremunhado, letárgico num lençol que o
envolvia em forma de atadura. Podia mergulhar nas águas profundas e, numa
demorada apneia, passear pelas profundezas e regressar à superfície com o corpo
seco. Podia estar dias a fio sem cair no sono. Podia voar sem a atalaia de
deuses, mesmo na ausência de asas. Era como se passasse a ser deus em pessoa própria.
Sempre aprendeu que deus tudo consegue.
Nestes preparos, encontrou-se no
fundo do mar, onde a profundeza já era tanta que rareava a luz do sol, onde as águas
já eram frias a ponto da hipotermia. Observou os peixes, a cadeia alimentar, os
corais que assentavam na areia fina e escura – tão escura que dava para
entender que não estava longe de um vulcão submerso. Confirmou a existência de
sereias: nesta demanda, cruzou-se com cinco diferentes sereias. (Confirmou
serem diferentes as sereias, pois as caudas tinham cores diferentes, o mesmo
sucedendo com os seus cabelos – a menos que tudo não passasse de uma ilusão de ótica,
ou que as sereias fossem a personificação de entidades malévolas que se
insinuavam junto dele, com propósitos inconfessáveis de onde resultaria grave
dano para si.) Ao início, esboçou uma aproximação. Recuou. Não queria saber o
que as sereias tinham para contar. De certeza que era um ardil. Não podia ser vítima
da ingenuidade, ou da soberba. Mais valia acionar a desconfiança metódica. Ao
menos, extrair-se-ia do mar com a certeza de que as sereias existem. O mesmo não
podia dizer de deus.
Também encontrou uma nau antiga naufragada.
Deambulou pelas suas entranhas abandonadas, em ruínas. Havia pedaços de madeira
que se estilhaçavam mal pousava os pés, mesmo que o gesto fosse suave e os pés
não assentassem com a força toda. Dizem as lendas que as embarcações
naufragadas escondem tesouros. Ou fantasmas. Ou fantasmas que zelam pelos
tesouros sepultados. Não deu grande crédito às lendas. Avançou sem medo pelo
interior da nau. Também não viu esqueletos – outro presságio anotado nas
lendas. Sem querer, trespassou com os pés um suporte do mastro que ainda estava,
por milagre, intacto, impassível à erosão. O mastro perdeu a sua sumptuosidade
e esfrangalhou-se em cima do convés, que, por sua vez, abateu com fragor. Por pouco,
não foi atingido pelos destroços e pela nuvem de pó que sobejou do incidente. Preferiu
deixar o lugar, não fossem ocorrer males maiores.
De repente, uma das sereias nadou em
círculos, cercando-o. Não percebia se a atitude era amistosa, ou se era prenúncio
de um ataque. Não demorou a perceber as intenções. O olhar enfurecido da
sereia, o seu rabear contundente, eram sinal das intenções. Ficou parado no
mesmo lugar, à espera de ver o que ia acontecer. A sereia lançou uns dardos
flamejantes que explodiam ao contacto com a areia. Não sabia se ela não
acertava por desmazelo, ou se era de propósito. As outras quatro sereias
juntaram-se ao cerco, com a mesma atitude iracunda e inamistosa. Continuou
paralisado, como se algo impedisse os movimentos – queria fugir, mas não era
capaz. Estava à mercê das sereias. Já ajoelhado, enquanto elas adejavam sobre a
sua cabeça tombada, prolongando a humilhação, à espera da estocada final.
Acordou em sobressalto, os lençóis
encharcados em suor. Era só um pesadelo. Tinha de o contar no dia seguinte,
quando fosse ao consultório do perito em dores da alma. Uma dupla interrogação
subiu à boca de cena: estaria transformado num misógino? E, afinal, deus existiria?
(Pois talvez tivesse sido ele a salvá-lo do tonitruante pesadelo.)
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