Thievery Corporation, “Sweet
Tides”, in https://www.youtube.com/watch?v=sRbKzumSPVw
O guardador de rebanhos fugiu dos
montes que por esta altura revêm a urze que medra. Desceu à cidade lampeira. Como
mandam os preceitos, tirou a roupa mais janota que tem no armário e compareceu
apessoado. Escanhoou-se, coisa rara às sextas-feiras. Chegou aos ouvidos que a
menina-limão (era assim que a chamava quando foram colegas de carteira na
escola primária) vinha de visita à cidade.
A menina-limão era conhecida no mundo
inteiro. Sempre teve queda para o canto e fez carreira nas óperas com linhagem
internacional. Fez-se constar que a menina-limão queria visitar a cidade
pequena onde nasceu. Trazia um largo séquito a tiracolo. Jornalistas, câmaras
de filmar e de fotografar, manicure e
cabeleireira, uns senhores pomposos que mandavam em tudo e em mais alguma coisa,
até nos passos que a menina-limão, qual bonequinha de porcelana, podia dar. Fez-se
constar que a menina-limão ia jantar na cidade pequena – que era pequena para o
seu esplendoroso cosmopolitismo, mas grande de mais para o guardador de
rebanhos.
O rapaz chegou à porta do
restaurante. Não o deixaram entrar. Protestou: que era amigo de infância da
menina-limão e que ouvira dizer que ela queria falar com as pessoas que tinham
sido importantes quando viveu os primeiros anos antes de emigrar para uma
cidade maior. Um homem paquidérmico estendeu o braço e, com uma força improvável,
parou o guardador de rebanhos. Continuou a protestar, agora com voz mais
sonora. A menina-limão tomou nota dos vitupérios que faziam escala no exterior
do restaurante. Num assomo de memória, lembrou-se do guardador de rebanhos
(que, na altura, ainda o não era): “Herculano!”,
exclamou, contrariando os tratos de rainha que o séquito lhe consagrava, porque
o séquito não queria que a menina-limão irrompesse numa espontaneidade que não
quadrava com o guião milimetricamente estudado para a visita às origens.
Abraçaram-se. Atrás da menina-limão,
com uma lágrima não reprimida, a manicure
descaiu-se (na língua franca do mundo): “pobre
rapaz, que unhas encardidas. Precisava dos meus serviços.” O guardador de
rebanhos retorquiu no mesmo idioma, para surpresa da menina-limão (e de alguns
mirones locais, que não o julgavam conhecedor de línguas): “não se incomode. Estas são as minhas mãos, rudes
como o trabalho que levo.” A menina-limão quis que o rapaz a acompanhasse
ao jantar. Disse-lhe que tinha escolhido uma sopa de beterraba com natas ácidas.
O guardador de rebanhos fez uma careta feia e disparou, em tom amistoso: “essa agora, as beterrabas dão-se a comer aos
porcos! Não queres antes uma sopa de nabos, como aquelas que comíamos na
cantina da escola?”
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