8.3.17

Ministério do desarmamento


Radiohead, “Lotus Flower”, in https://www.youtube.com/watch?v=cfOa1a8hYP8    
As ideias inesperadas continuavam a irromper, contra a teoria das probabilidades, contra os pilares da normalidade por tantos deificada. O chefe do governo (outra vez aconselhado pelos ortodoxos jovens turcos) ousou pensar no ministério do desarmamento. O país seria expurgado de armas e de forças militares. Disse-o, em tom solene, em comunicação ao país através da televisão. Como sabia tratar-se de matéria sensível, passou de imediato às explicações.
Lembrou que deixou de haver ameaças externas à integridade do país. Pediu aos cidadãos para reaprenderem o conceito de soberania, pois não ela estava em causa (nem a sobrevivência do país) se fossem extintas (como seriam) as forças armadas e deixasse de haver militares a ostentar o garbo do fardamento e das divisas à lapela. Pediu aos concidadãos que aterrassem os pés no solo: o país que ele comandava não era atrativo para presuntivas invasões perpetradas por outras nações. E para acautelar possíveis teorias da conspiração que surgissem em contraposição do (na maneira de ver dos críticos da medida) lírico pacifismo do chefe do governo, esbracejando os críticos com ameaças dos que espalham terrorismo amiúde, o chefe do governo sossegou quem o ouvia: tinha em sua posse estudos credíveis que denegavam a possibilidade de o país ser vítima de ataques terroristas. Outra vez a retórica dos pés assentes no chão: ninguém, no seu bom senso, podia acreditar que os profissionais do terror escolhessem um país insignificante como alvo. A existir, o ataque não teria contundência. E se o país ficasse desmilitarizado, menos prováveis seriam esses ataques: os profissionais do terror quase não olham a meios para atingirem os fins – é sabido –, mas atacar uma nação indefesa estava para além da escassa ética dos terroristas.
O chefe do governo informou mais: os quarteis iam ser transformados em parques temáticos, uns para crianças, outros para adolescentes, outros para recuperação de toxicodependentes. As armas não seriam vendidas, seriam destinadas a uma pira enorme para serem destruídas pela combustão do fogo. Antecipando a preocupação de muitos com o destino de tantos militares condenados ao desemprego, o chefe do governo adiantou que se tratava de um problema a prazo (como quem diz: com o passar do tempo os militares descontinuados acabam por morrer) e, enquanto o tempo não o resolvesse, os militares desapossados da farda e da arma iam ser transferidos para as forças policiais.
Foi então que a população, pelo menos a que não estava distraída, percebeu tudo. O ministério do desarmamento podia ser uma comissão liquidatária das forças armadas, mas a transfusão de militares para as polícias atestava os pergaminhos do chefe do governo. A prova dos nove estava à frente dos olhos, numa notícia quase encapotada e simultânea do anúncio do ministério do desarmamento: o ministério que tutela as polícias ia passar a receber um montão de dinheiro do orçamento.
Os cidadãos não distraídos, os que não caíram no logro do pacifismo remediado do chefe do governo, começaram a acordar preocupados: ele seriam tantos os polícias a pulular por aí.

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