5.6.17

Degrau


Nick Cave, “Into My Arms” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=FG0-cncMpt8    
Nas escadas de granito gasto, com o sortilégio da luz clara que irrompe numa nesga do céu, os amantes entrelaçam as mãos e olham-se demoradamente nos fundos olhos de cada um. Não são modestos no silêncio cheio, em perfeita sublimação das palavras, que consta do cardápio de onde se configuram inteiros. Não é precoce, nem banal, o gesto afetuoso. Não é inexpressivo o sorriso-alimento que preenche o rosto outro. Nem com a ajuda da chuva destilada podia haver tanto sentimento repleto.
Os amantes avançam os degraus. Um a um, com o vagar que se exige diante do bucolismo do jardim deposto no vale onde desagua a escadaria. O granito frio (mercê do frio invernal) aquece com o contágio dos corpos transidos que persistem no enlaçar das mãos. É como se um feixe contínuo descesse dos corpos dos amantes e se entranhasse nas porosidades do granito que acama as escadas. E os amantes fizessem parte das escadas seu palco.
No sopé das escadas, duas anciãs demoram-se na contemplação dos amantes. Talvez assomem memórias ao cais de onde enxugam as lágrimas sentidas pela ausência dos consortes. As pobres viúvas comungam o quadro vivo com os amantes, como se fossem seus tutores e os amantes soubessem que eram agraciados com a bênção das viúvas – garantia de imorredoiro amor, talvez fosse esse o entendimento. A meio da escadaria, um banco de madeira à espera da gente que se cansa de subir tantos e inclinados degraus. Os amantes ignoram o banco e continuam a subida. Com o mesmo vagar, extasiados com a imagem do rio onde o sol entardecido encontra espelho, como se um postal da cidade desfilasse sob os pés dos amantes. E eles, abrindo as mãos, tomassem a cidade inteira em seu regaço. O caudal do rio, todo o casario e seus inquilinos, o arvoredo aglutinado nos jardins e nas bermas das avenidas largas, o sol desmaiado emprestando uma cor baça, mas quimérica, ao postal a nidificar nas mãos dos amantes.
E os amantes, sabendo que tinham a aquiescência da cidade em seu esplendor, tomaram a seu cargo a retribuição na forma de um amor singular. Despojando-se, à vista da cidade inteira, de todas as máculas que podiam ser mau legado pretérito. Do mais alto do miradouro, os amantes fizeram coro com a cidade luminosa que se preparava para receber a noite. Fizeram coro com aquela luz invulgar, suplicando-lhe que fosse a matriz do seu amor.

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