21.6.17

O relógio emudecido


Badbadnotgood, “Lavender”, in https://www.youtube.com/watch?v=2AJOqx6_UKQ    
O rapaz não sabia a idade do relógio que encimava a torre da igreja. Passava lá todos os dias, a caminho da escola. Só algum tempo depois da rotina começou a reparar no relógio da torre da igreja.
Habitualmente, o relógio soava, tonitruante, quando o rapaz ia a caminho da escola. A rotina exigia que ele passasse à frente do relógio à hora certa, pois ouvia sempre o sino do relógio a matraquear oito repetitivas percussões no címbalo metálico que era a extremidade do movimento orquestrado. Não tinha qualquer significado para o rapaz, essa coincidência. Nem mais tarde, já espigadote, já não refém daquela rotina, continuavam a entrar pelos ouvidos os oito repetitivos repicares matinais. Apesar de uns amigos se terem enamorado por esotéricas matérias, entre as quais estava a cabalística, ele retirava significado ao acontecimento. O relógio percutia oito repetitivas badaladas todos os dias àquela hora, porque, àquela hora, acontecia chegar-se à oitava hora do dia e estava convencionado que o relógio admoestava os mais distraídos para a hora que mandava as pessoas para o trabalho. Ao fim de semana (e nos feriados), o sino da torre da igreja era amigo dos habitantes: o sino soava mais baixo, um rumor quase impercetível; só podia ser por respeito ao descanso das pessoas.
Um dia, o rapaz sentiu que o dia tinha começado diferente. Era como se algo faltasse para poder dizer que o dia tinha começado com a habitual alvorada. À oitava hora do dia, o relógio emudeceu. Tinha a certeza que o relógio tinha anunciado a sétima hora do dia, pois já estava acordado a essa hora. Pela primeira vez desde que passara a dedicar uma atenção quase religiosa ao seu andamento, o relógio artesanal calara-se. O rapaz não ficou inquieto. Podia devotar ao relógio uma atenção quotidiana, mas não considerava ser (como deduzido da suposição do narrador) um religioso acompanhamento. O rapaz saiu à rua pé ante pé, desconfiado, como se receasse que faltava chão sob os pés e caísse vertiginosamente no vazio sobrante.
Descobriu em pouco tempo a causa da anomalia. Àquela hora, o sol escondera-se atrás da lua, num eclipse sem precedentes. O relógio ficou mudo para as pessoas não distraírem com as minudências do tempo e consagrassem atenção à celebração do eclipse solar. O relógio ficava para segundo plano.

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