19.6.17

A tília sozinha


Morgan Delt, “Some Sunsick Day”, in https://www.youtube.com/watch?v=A95QBLePeFw    
Guardava, em penhor daquele lugar, a imagem da tília sozinha no meio da larga avenida. Era como se o desenho do lugar tivesse sido feito a partir da árvore, ou como se da árvore um compasso irradiasse com um desenho impecável, aritmético, numa ordem helvética (sem se estar na Suíça).
A tília era frondosa. A folhagem resplandecia sob a inspiração do dia imensamente soalheiro. Talvez resplandecesse porque o vento respirava sobre a árvore, num sopro modesto e, todavia, heurístico. A copa da árvore abria-se num triângulo de aba larga. As pessoas diziam que se abrigavam sob a tília quando o verão encomendava dias de canícula implacável. Na sua generosidade, a tília oferecia frescor. E, mesmo assim, não havia ninguém que perdesse dois minutos numa interrogação possivelmente capital: havia quem regasse a tília?
Também se dizia que, em tempos já sem memória, dois amantes selaram o amor com um poema lacrado na casca grossa que protegia o tronco das adversidades exteriores. As marcas do tempo foram apagando a nitidez das palavras. Não era possível perceber as estrofes todas, as palavras todas. Estava lá a mais importante de todas (em se tratando de uma profissão de fé entre dois amantes): “amor”. Escrita três vezes, em suas possíveis variedades (“amor”, “amar”, “amo”). Foram as únicas palavras que não ganharam bolor com a caução do tempo inamovível.
A árvore centrípeta tutelava a cidade. Não eram seu ex-libris outros monumentos; era a tília que desalfandegava os poros viventes da cidade. Era através da tília que a cidade respirava. Mas havia quem advertisse que a tília estava sitiada pela melancolia. Era uma árvore sozinha. Perguntei se a tília nunca teve companhia. Alguém respondeu, apontando para uma fotografia antiga afixada na parede do café central, que houve tempos em que a avenida foi povoada por um correr de árvores. Foi por pouco tempo. As demais árvores mirraram, tolhidas por uma doença fatal que botânico nenhum conseguiu explicar. A tília matricial continuou viçosa, imune às doenças do foro.
Talvez não quisesse companhia. Talvez a tília não admitisse partilhar o protagonismo com outras árvores, menores e juvenis. Pagou o egoísmo com a solidão. A tília sozinha não se importava. Todos os olhos se vertiam sobre a sua magnificência. No fundo, não estava sozinha, tantos eram os olhos que não paravam de exclamar a sua admiração quando se demoravam a contemplá-la.

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