2.6.17

A sucata


LCD Soundsystem, “American Dream”, in https://www.youtube.com/watch?v=ML1MUKOJIIo    
Experimentemos deixar as coisas inúteis ao deus-dará. Ficarão emaranhadas na indiferença que passa a ser seu selo distintivo. Amontoam-se, à espera da poeira. À espera que alguém, num dia porventura incerto, delas tenha visibilidade.
Percebe-se que ficam expostas ao olvido, pois a sua inutilidade adestra-as ao esquecimento. Envelhecem. Ainda mais depressa do que antes de o serem, quando uma conjugação de fatores ditou a sua incongruência. Perdidas numa sobra de materiais sem serventia, envelhecem ainda mais. Ficam imersas na decadência própria do seu estatuto de sucata. Nem sequer se intui um esforço para atapetar memórias, fazendo desfilar a opulência de outros tempos, quando ainda nem sequer havia a noção de poderem ser sucata. Nessa altura, a sucata era apenas uma palavra vã. Um monumento à inestética, de cada vez que havia estradas para percorrer e elas tinham precipícios compostos de sucatas. Pois elas agridem o olhar, com o ajuntamento caótico de peças metálicas desconjuntadas, as sobras dos acidentes de viação em ferros retorcidos, peças avulsas espalhadas ao acaso, a ferrugem mosqueando a paisagem.
As sucatas como cemitérios onde as carcaças inúteis eram depositadas. Agora, tem-se a noção que a sucata não é um cemitério. Fazem-se negócios nas sucatas. Elas conservam alguma utilidade. Não se trata de um amontoado exasperante de quinquilharia. As peças avulsas podem ter procura, a qualquer momento. Ainda lhes sobra uma função mercantil. Uma sucata não é a incarnação de um cemitério, mas é a personificação da decadência. O lugar onde são vertidos os despojos de algo que outrora teve certamente alguma grandeza.
No ocaso de uma sucata, resta apreciar o entardecer na sua finitude. As cores mestiçadas que se sobrepõem em camadas podem não ser recompensa para a angústia de uma sucata. À falta de melhor, que sobre a semelhança de um entardecer onde se conserva alguma estatura. Ou o pesar específico que repousa sobre a idiossincrasia de cada despojo amontoado. Ao menos, há essa serventia. Uma serventia, qualquer.
(A menos que uma ardilosa hermenêutica procure disfarçar a indiferença de que é credora a sucata.)

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