15.6.17

Da insubordinação


God Is an Astronaut, “Forever Lost”, in https://www.youtube.com/watch?v=QEphsKl1g9M    
- Há uma anestesia que se ensaia no propósito do esquecimento das coisas – mas digo, das coisas como elas são, não como se intuem como deviam ser.
- Que anestesia é essa?
- Aquela que liberta os freios ao que se julga ser um atalho que se sobrepõe à vontade, através das algemas das imposições gratuitas que nunca deviam ser obedecidas.
- Queres falar sobre rebeldia?
- Sim. Mas de uma forma de rebeldia que não possa de um ardil. Daquela rebeldia que se supõe sê-lo e não passa de um ato voluntário que contradiz tudo o que venha na rede do aceitável (pelo menos na formulação dos espíritos pensantes, dos que podemos considerar os doutrinadores).
- Julgo entender que te opões a esses espíritos livres.
- Estás certo, é da oposição total que se trata. Esses insubordinados não se movem se não pela intenção de provocarem os bons costumes, o estabelecido nos códigos de conduta, as ideias oferecidas pelos espíritos pensantes. Não os tenho como espíritos livres. Nem como genuínos insubordinados.
- Contudo, deves reconhecer que os haja, algures, mergulhados na sua espontaneidade. Gente que professa a antinomia perante o estabelecido e que se insurge contra os bons costumes e os códigos de conduta.
- Não os consigo reconhecer. Os que aparecem são um embuste de si mesmos. Nem sequer lhes gabo a artimanha interior em que se consomem, pois de tanto se oporem a tanta coisa, depressa escorregam para a incongruência interna: hoje apostrofam algo que dantes foi alardeado (pelo menos com a caução do seu silêncio). Acabam por ser espíritos fracos. Movem-se por um determinismo destrutivo.
- Como podes ter tanta certeza sobre o que move outras pessoas que estão no exterior de ti? Como podes alinhavar tamanhas conclusões se não te podes tomar por dentro desses espíritos e ter uma noção do que os move? Parece-me que te encontras refém de um preconceito inultrapassável.
- Explico-me: concedo que não posso dar caução a tais respostas, pois não tenho como circular por dentro do sangue dos insubordinados. Todavia, há sinais reveladores. Primeiro, limitam-se a destruir o que está instituído. Não têm nenhuma ideia do que pode servir como alternativa. Segundo, alguns sinais exteriores são a prova de que compactuam com o que dizem estar nos seus antípodas.
- Não me pronuncio sobre os tais sinais exteriores que podem ser apanágio do contrário do que defendem. Cada qual toma o rumo da vida que achar por bem. Não cabe aos outros fazer julgamentos. Ou todos corremos o risco de sermos juízes uns dos outros, com o inerente caos como consequência – com a consequente pulverização da autonomia da pessoa. Pronuncio-me sobre o argumento que se insurge contra a demissão de um modelo alternativo. Não compreendes o que inspira um espírito livre e desassombrado: ele não pode ser menoscabado só por desmontar o estabelecido sem ousar os alinhavos de uma alternativa. Era o que mais faltava, se os espíritos (que, julgo, todos se consideram livres) não pudessem ser críticos se lhes fosse exigida, como contrapartida, a formulação de uma alternativa. Quem assim se dispõe, não sabe o que é um espírito livre.
- Nesse caso, o ónus da transformação fica sempre do lado de quem não tem apenas o comportamento negativo da destruição pela destruição. Parece-me que os insubordinados não passam de gente com um inapelável mau feitio.
- Acabas de cair em contradição, ao afirmar que só os que ousam descoser as bainhas do estabelecido para o caminho da transformação é que merecem crédito. Assim sendo, essas pessoas estão do lado dos insubordinados que execras. Uns e outros não contemporizam com a ordem estabelecida. Os insubordinados têm boa companhia. (Ou o contrário: as pessoas por dentro do sistema que compõem planos para a transfiguração do estabelecido têm a boa companhia dos insubordinados.) No fim de contas, são todos insubmissos.
- Há algum mal em ser conservador?
- Não me vês a condenar os conservadores.
- Julgo que chegamos a uma forma mínima de entendimento.
- Não diria tanto. Um conservador da tua gesta acaba por ser mais insubordinado do que os insubordinados que te desagradam.

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