30.6.17

Tentativas


The Dream Syndicate, “How Did I Find Myself Here”, in https://www.youtube.com/watch?v=cv2nK0X8pCM    
Dizia: vou tentar, outra vez, ser boa pessoa. Vou tentar, após outra tentativa falhada, espreitar sobre o dorso da bondade e deixá-la vegetar na consciência em combustão. Vou tentar aderir às modas, num esforço, sobre-humano se preciso for, para as entender, para delas enamorar.
Dizia: vou fazer outra tentativa para dissolver os rudimentos que dão corda aos arrependimentos: não há nada que atemorize, nada que congrace o desassossego que avilta a alma. Dizia, também: todavia, não sei por que será tão audível o murmúrio interior para compaginar as tentativas com o modo de ser. Parece que medra um cansaço interior e que já não sei ser quem sou, que pressinto ter de deixar de ser quem fui. Neste rendilhado, um autêntico labirinto, contagia-se um estremecimento invulgar. Como posso ser quem não sou, se não sei o que quero ser?
As tentativas são esboços infecundos de desenhar um mapa claro, onde não haja equívocos, nem ardis, nem personagens de atalaia à espera de um contratempo para desferirem o golpe fatal. As tentativas quadram com boas intenções. Começam sempre assim. Depois, apodrecem no fermento da sua inutilidade; estima-se, mais tarde, que não eram bem-intencionadas – ou pode dar-se o ocaso dos conceitos e já não ser possível apontar a dedo o que é uma boa intenção. A perseverança começa por ser um imodesto manancial que alimenta o ânimo. O tempo por diante será composto pela dissemelhança (quando colocado em cotejo com o tempo pretérito) – assim se promete, quase em forma de juramento. As tentativas convencem que a dissemelhança sela as benfeitorias que se aguardam. Só que as tentativas são um exercício em branco, som espaço para alinhavar o que se espera – a não ser um território de mudança. Não chega. É aviltante para o eu que não cobiça ser um eu que não é.
Dizia: será mais uma tentativa. Até que, tentativa atrás de tentativa, frua a fadiga das tentativas e se ambicione, como desiderato sublime, interiorizar o que se é. As tentativas são o presságio dos arrependimentos, tão estultos como as tentativas esboçadas no estirador da frivolidade.  

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