Interpol, “My Desire”, in https://www.youtube.com/watch?v=692QlOQytTY
Explicava à menina que os refúgios são
como lagos desertos, um pedaço de água de onde desabrocha uma beleza singular e
que, todavia, se resume a um estulto predicado dada a ausência de vida. Ela tinha
de saber que há espelhos ardilosos que compõem uma imagem deformada da pessoa
que estaciona diante deles. Se as pessoas não convivem com a opacidade desses
espelhos, podem ser levadas à falsidade de si mesmas. Exemplificou:
“Toma
este espelho como paradigma do que quero dizer. Põe-te à frente dele. Gostas do
que vês, não é? Podias jurar que te demoravas à frente do espelho, amaciando os
cabelos longos que se deitam sobre os ombros, espreitando os vários ângulos do
rosto, indagando um ou outro sinal que o povoam. Numa demora não controlada,
mas tonificante. Se te aproximares do espelho, verás que ele dissimula outro
espelho atrás dele. Só quando ficas junto do espelho é que consegues discernir
a existência de um espelho mais atrás. É o filtro do primeiro espelho.
Não
estranhes se a mão trespassar o espelho quando o queres tocar. É um espelho
fictício. Não tem existência tangível. É um logro, dirás. Não te enganes ao
cair na precipitação do juízo. Pode ser apenas um verniz que, com a
proximidade, convoca a atenção para o espelho que verdadeiramente importa. Terás
de franquear o primeiro espelho – que afinal não é um espelho. Colocas-te
diante do espelho na retaguarda, ajuramentando-o à condição de tira-teimas.
Continuas
a contemplar a imagem devolvida pelo espelho. Não tires outra conclusão
apressada. Chega-te a esse espelho. Com a proximidade, verás que a tua imagem
se deslaça até ficar um borrão indistinto, uma sombra que se confunde com a
penumbra que vem de atacado talvez por absorveres a luz que dá vida a esse
espelho. Pressentes que o espelho também é uma impostura. Contornas o espelho e
reparas que um terceiro espelho ampara, à necessária distância, o espelho
anterior. Repetes o procedimento. Repetes a ideia sobre a imagem retida pelos
espelhos antecedentes. De cada vez que o teu corpo se junta ao vidro que dá
corpo ao espelho, ficas inquieta: a tua imagem decai na dissolução, em
diferentes modalidades. Deixas de ser tu. A imagem ampliada de ti não quadra
com a ideia que dela julgas ter.
Após
uma sucessão copiosa de espelhos, deparas com um espelho que traz perplexidade atrelada.
Tem um vidro límpido, reproduzindo a imagem com uma nitidez singular. E,
contudo, esse espelho não traduz a imagem de ti quando posas para ele; só vês o
vazio por dentro da moldura do espelho. Como é possível? – perguntas, numa
aflição compreensível. Este é o último espelho da sequência. Atrás dele, uma
parede (ou um precipício, não estás segura). No avesso do espelho encontras um
envelope lacrado. O frémito em que te consomes não resiste a saciar a
curiosidade. Abres o envelope. Numa folha amarelada, em caligrafia escorreita, uma
frase lapidar: “tu não existes.”
Amarrotas
o papel, protestando a tua iracunda condição. Regressas à pose diante do
espelho, só para contrariar o presságio contido no subscrito envelhecido. Mas a
mensagem não estava gasta. Nessa altura percebes tudo: o que importa cevar a
incessante autoestima à frente de um espelho se cada indivíduo é uma fração
insignificante do todo?”
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