Air, “Sexy Boy”, in https://www.youtube.com/watch?v=wouKI_myXxk
Maldita irreverência que, se não o
matava, deixava-o em maus lençóis aos olhos (dizem) benquistos da turba. Não podia
fazer nada. Era inata, a condição irreverente. Disputava com os mal-educados
(para os padrões sociais vigentes) o trofeu do mais insubmisso. E orgulhava-se.
Era tão irremediável que já nem o
levavam a sério. Podia engalanar-se com as provocações que quisesse, descer ao
inferno do humor negro, passear a soberba dos que patrocinam despautérios sem
causa, que os outros, sobretudo os atingidos, só conseguiam mostrar
indiferença. Estavam vacinados. E ele, presuntivo culpado de um soez atentado às
boas convenções, esperando com ansiedade ser sentado no banco dos réus para sumário
julgamento, andava imerso numa profunda melancolia: nem sequer tinha direito a
julgamento e os seus delitos não entravam nas alíneas dos crimes de
lesa-sociedade. Pobre homem: estava num embaraço tal que tinha o precipício por
vizinhança.
Nem sempre foi assim. Houve alturas,
quando era neófito na provocação, quando era o sujeito pária e a condição
causava deleite prolongado, que o resto da gente, da gente muito séria e
respeitadora dos cânones, não tolerava tamanho topete. As pessoas fugiam dele
quando estavam em público, como se a sarna fosse sua impressão digital e se contagiasse
à menor aproximação. Ninguém queria conviver com ele. E ele, talvez sociopata,
agradecia. Preferia o desassombro, a honestidade no trato, sem nunca decair na
boçalidade que execrava, a ter de se multiplicar em falazes genuflexões que
eram a desvirtude dos maus pensamentos vociferados interiormente.
Se perguntassem o que mais deplorava
no lugar em que vivia, dizia, à exaustão, ser a hipocrisia. Combatia-a através
da irreverência sem freios. Mesmo que tivesse de ser cominado com castigos. Já se
sabia, o isolamento só era castigo na perspetiva de quem castigava. Para ele, era
um favor que faziam, arejar o ambiente das personagens esconjuráveis que
deixavam de ser sua vizinhança.
Uma vez, alguém se lembrou de servir
sumo de limão numa vernissage a que
compareceu sem ser convidado. Suspeitava-se que ele aparecesse para semear a
habitual confusão – antes de ser firmemente expulso do evento por um par de
gorilas bem adestrados. Desta vez, havia instruções para só lhe servirem sumo
de limão. Concentrado e sem açúcar. Erro crasso: ele adorava sumo de limão, sem
aditivos nem adoçantes. Aliás, odiava tudo o que fosse sequer discretamente
doce. Ria-se, desbragadamente, a cada copo de sumo de limão que ia bebendo,
enquanto asneava os disparates de seu timbre e outros a que a originalidade
dava caução. Os que o detestavam cominavam um castigo que era um prazer.
Nessa noite, deitou-se abraçado a uma
recompensa sem precedentes: afinal, a sociedade que o julgava pária era
perfeita: afinal, o ódio que por ele destilavam era pago com sumo de limão. A
maior prebenda que lhe podiam oferecer.
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