26.6.17

Castigado com sumo de limão, aos costumes mandou dizer que sim


Air, “Sexy Boy”, in https://www.youtube.com/watch?v=wouKI_myXxk    
Maldita irreverência que, se não o matava, deixava-o em maus lençóis aos olhos (dizem) benquistos da turba. Não podia fazer nada. Era inata, a condição irreverente. Disputava com os mal-educados (para os padrões sociais vigentes) o trofeu do mais insubmisso. E orgulhava-se.
Era tão irremediável que já nem o levavam a sério. Podia engalanar-se com as provocações que quisesse, descer ao inferno do humor negro, passear a soberba dos que patrocinam despautérios sem causa, que os outros, sobretudo os atingidos, só conseguiam mostrar indiferença. Estavam vacinados. E ele, presuntivo culpado de um soez atentado às boas convenções, esperando com ansiedade ser sentado no banco dos réus para sumário julgamento, andava imerso numa profunda melancolia: nem sequer tinha direito a julgamento e os seus delitos não entravam nas alíneas dos crimes de lesa-sociedade. Pobre homem: estava num embaraço tal que tinha o precipício por vizinhança.
Nem sempre foi assim. Houve alturas, quando era neófito na provocação, quando era o sujeito pária e a condição causava deleite prolongado, que o resto da gente, da gente muito séria e respeitadora dos cânones, não tolerava tamanho topete. As pessoas fugiam dele quando estavam em público, como se a sarna fosse sua impressão digital e se contagiasse à menor aproximação. Ninguém queria conviver com ele. E ele, talvez sociopata, agradecia. Preferia o desassombro, a honestidade no trato, sem nunca decair na boçalidade que execrava, a ter de se multiplicar em falazes genuflexões que eram a desvirtude dos maus pensamentos vociferados interiormente.
Se perguntassem o que mais deplorava no lugar em que vivia, dizia, à exaustão, ser a hipocrisia. Combatia-a através da irreverência sem freios. Mesmo que tivesse de ser cominado com castigos. Já se sabia, o isolamento só era castigo na perspetiva de quem castigava. Para ele, era um favor que faziam, arejar o ambiente das personagens esconjuráveis que deixavam de ser sua vizinhança.
Uma vez, alguém se lembrou de servir sumo de limão numa vernissage a que compareceu sem ser convidado. Suspeitava-se que ele aparecesse para semear a habitual confusão – antes de ser firmemente expulso do evento por um par de gorilas bem adestrados. Desta vez, havia instruções para só lhe servirem sumo de limão. Concentrado e sem açúcar. Erro crasso: ele adorava sumo de limão, sem aditivos nem adoçantes. Aliás, odiava tudo o que fosse sequer discretamente doce. Ria-se, desbragadamente, a cada copo de sumo de limão que ia bebendo, enquanto asneava os disparates de seu timbre e outros a que a originalidade dava caução. Os que o detestavam cominavam um castigo que era um prazer.
Nessa noite, deitou-se abraçado a uma recompensa sem precedentes: afinal, a sociedade que o julgava pária era perfeita: afinal, o ódio que por ele destilavam era pago com sumo de limão. A maior prebenda que lhe podiam oferecer.

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