23.6.17

Tira as unhas dos olhos


Beth Gibbons & Rusty Man, “Mysteries”, in https://www.youtube.com/watch?v=x2oujWSZCcg    
Talvez haja textos incómodos. Sobretudo para quem os lê. Textos porventura excessivos, vertendo uma virulência incontida. São textos, porventura também, que põem a nu a raiva sem freio e que se não deve à vontade de quem passa à escrita as palavras. Textos tão incómodos para quem os lê como para quem os escreve. O autor preferia não os ter escrito. E, todavia, escreveu-os. Foi a laceração da alma sem ter à mão os freios precisos para desviar os olhos das atenções que não seriam credoras de atenção.
Textos que contêm palavras que entram nos olhos como lanças dilacerantes, como unhas que arranham os olhos, sangram-nos. Não são nacos de prosa que permitam um epílogo ameno. Termina-se o arrazoado e é-se assaltado por um sobressalto traduzido nas palavras virulentas. Ferem, essas palavras, porque quem as lê pode sentir a angústia de quem as trouxe ao seu conhecimento. Ainda que inadvertidamente, ainda que a sensibilidade exterior esteja ausente, vinga a perplexidade diante do desassossego vertido nas palavras acabadas de ler. É um texto-agressão, um manual de coisas vexatórias, o mais inadmissível dos inadmissíveis, a impossibilidade de assobiar ao alto quando à soleira vem desaguar o rude estertor dos factos.
Oxalá houvesse congeminação da vontade para tornar irrelevantes tais factos. Podia ser um estado de alma que revelasse o refrigério que a abriga, como se ela fosse imune às provocações que dão corpo, em seu resultado, ao antropológico esmorecimento. Pode haver momentos em que a indiferença seja critério ideal. Momentos em que a vontade se terça para deixar a indiferença ser punição severa aos que só merecem a indiferença. Por vezes, o inoportuno que desassossega medra em ebulição; dele irradia uma constelação de dores que, ao serem pungentes, ao darem à costa a pior dimensão da espécie de que somos atores, desata a configuração das palavras iracundas. Antes não houvesse este frémito, indomável. A intransigência combina-se com as veias ferventes que procuram diluir a ópera bufa.
O tempo há de curar o resto. É como suplicar que se tirem as unhas dos olhos. Ou, ao menos, que as unhas sejam aparadas. Para aplacar os sobressaltos e recusar as palavras incómodas, iradas, embebidas numa virulência incontida. Para, enfim, resgatar a lua dourada que merece ser leito duradouro.

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