17.3.21

A dança que não cessa

Ólafur Arnalds, “Undone”, in https://www.youtube.com/watch?v=vq9FTz3yIvc

Não seremos reféns dos demónios que se alardeiam na estrada deserta. A dança que dançamos, a dança de que somos feitores sem ninguém como testemunha, não desmaia nas ameaças de estertores que se desembainham. Pois maior é a espada que usamos em nossos corpos, a espada que entretece os passos da dança que embeleza a manhã.

Essa é a dança que não cessa, a nossa. A dança que se adestra nos meus passos desastrados. A dança que segue pela tua mão timoneira. Podemos saber-nos submersos na lava do tempo. Nunca nos damos por náufragos, que a dança é o periscópio que levanta o véu do porvir que sabemos estar do nosso lado. E nós, coreógrafos, anotamos num papel mental as danças que havemos de visitar. As danças em que os corpos são levados a um pedestal. As danças que nos povoam com os fragmentos dos lugares que se nobilitam com o nosso estar. As danças com um doce travo a loucura que ensaiamos sob a ordem da música. As danças mentais que nos transcendem no enredo que sobe a palco. As danças nos socalcos, a vinha por testemunha, e uma jura dos néctares por haver.

Não emudecemos este dom. O demais será apenas um parêntesis. Uma promessa que saberemos cumprir. E mesmo enquanto não for tempo de dança, será a dança que reinventamos nos poros que continuam a suar, na esgrima dos corpos desejosos, na cumplicidade que continua a desenhar uma curva contínua. E dançamos, corpos resistentes, no mais puro ar que da montanha trazemos para dentro de casa, no riso do estuário que oferece o rio ao amplexo do mar, nas palavras que são ditas na armadura do silêncio. Saberemos rasurá-las, quando for preciso. O labirinto em que nos movemos não é à prova de bala. Nós é que somos à prova de bala.

No desenho dos passos coreografados, somos matéria incorruptível. As mãos, saciando-se umas nas outras, os rostos que não envelhecem envelhecendo, as bocas ávidas de beijos, nós sem os nós que não nos pertencem. Um palco exclusivo, do tamanho do mundo, que retemos na imensidão guardada nas nossas mãos fechadas. Só à espera de as abrirmos, na dança que faz do luar o sortilégio escondido nas nossas mãos.

Não deixamos ao acaso as partituras que desenhamos no papel herdado da memória. Escrevemos, as vezes que for preciso, que somos os lídimos coreógrafos de uma dança que não cessa. E fazemos da casa, e do mundo de que somos tutores, a gramática reservada.

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