18.3.21

Os outros não somos nós (short stories #304)

Hot Chip, “Huarache Lights” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=oNidfSk-5Jw

          De um biombo sem sela, um feixe de luzes disformes açambarca o dia constante. Há holofotes dirigidos aos notáveis. Os outros, falseiam credenciais para terem a atenção dos néones. Urdem o seu fingimento. Até que um deles contraria a anestesia instalada e protesta: “os outros não somos nós.” Há um equívoco na formulação: ele fala em nome próprio, mas usa a primeira pessoa do plural. “É uma figura de estilo”, contrapõe, ao ser avisado da contradição. Não se ensaia um desmentido. A fratura de tantos eus que querem ser os outros arrasta-se pelas ruelas da cidade, ajudando a compor o cenário embaciado que entristece as paredes. “A vontade de sermos os outros alinhava-se na vacina contra o ensimesmar. Caímos no outro extremo.” – acrescenta, melancolicamente (talvez por se rever no diagnóstico que a erupção de lucidez caucionou). Nenhum homem é uma ilha, manda o lugar-comum. Em nós embebe-se uma miríade de circunstâncias, pessoas, palavras, formatos de tempo, mapas arquivados. Não podemos ser as vítimas fáceis da extravagância de um eu que se despe por dentro para ser uma mistura de outros. Se cairmos no logro, um dia destes estamos nas vascas da normalização. Em vias de ser extinta a identidade que nos distingue. “É do interesse dos poderes. A normalização destrói as diferenças. As diferenças somam variáveis que os poderes não conseguem domar.” – disse, enquanto dirigia o olhar contemplativo para o céu desmaiado. Não há óbices à liberdade que se entrecruzem com a diminuição do eu. Alguém contesta: “os outros não somos nós, e isso contém um sentido que pareces desprezar.” É o amparo da lei da reciprocidade. Não devemos ser a diluição nos outros, nem podemos pretender que os outros sejam feitos à nossa imagem. Este deixou de ser um lugar para gurus.

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