25.3.21

As metáforas escondidas

Massive Attack & Young Fathers, “Voodoo in My Blood”, in https://www.youtube.com/watch?v=ElvLZMsYXlo

O comboio sem nome passa no apeadeiro, sem parar. Não se sabe não tem nome ou se é a velocidade que traz que não deixa ver o nome. Talvez apenas esconda o nome, para ninguém o conhecer. Para prosseguir incógnito de apeadeiro em apeadeiro.

Os nomes têm este sortilégio. Arrancam do anonimato as pessoas, as coisas, os lugares. Embebem-nos em identidade. Existiram sem terem um nome por caução. As leis determinam que só têm personalidade quando são crismados com um nome. Não se refugiam na incógnita condição.

Mas há os que se rebelam contra o estatuído. Desafiam as convenções. Querem tirar partido da ausência de nome. Há autores que preferem o conforto do anonimato. Ou do pseudónimo, que é um eufemismo para o lugar incógnito em que querem permanecer. Não têm um nome visível ao olhar dos outros; ou o nome que carregam é um disfarce para não darem a saber a pessoa que em si se lobriga. Os que se disfarçam atrás de um pseudónimo podem, a páginas tantas, errar na confusão entre o nome de batismo e o pseudónimo. Fundem identidades. Até que consigam extinguir a identidade com que nasceram, sobreposta pela identidade em que medrou o nome transfigurado.

Ou pode apenas acontecer que, como o comboio que não deixa ver o nome a quem está no apeadeiro, queiram passar velozmente pela vida, como se fossem cometas que deixam um vestígio feérico no céu, com todos os olhares vertidos para o seu rasto efémero. Preferem os “cinco minutos de fama” a que se segue o esquecimento do que uma vida inteira consagrada ao esquecimento. Não serão autenticamente incógnitos, mas fenómenos transitórios que agarram um instante, um instante que basta, na atenção dos demais.

Os cânones não são diretos, mas insinuam-no: os nomes fundidos na incógnita condição e os outros que se disfarçam de pseudónimos são almas tresmalhadas que escapam ao escrutínio dos pares. Para os canónicos, não merecem o mesmo lugar na cidade. Deviam pertencer a uma condição subalterna à dos seus pares que não se escondem do nome.

Os canónicos deviam aprender que a liberdade não se ensina.

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