19.3.21

“Memórias de há atrasado” (redundância compulsória) #2: “salvo melhor opinião”

Dream People, “People Think”, in https://www.youtube.com/watch?v=oxk2gMwCbmc

Um perito oferece a sua perícia. Adverte, como prolegómeno: “salvo melhor opinião”. Oferece, também, a possibilidade de outro perito possuir melhor opinião do que a sua. É, à primeira vista, um gesto de humildade intelectual. A sua pose é a de quem possui capacidades para investigar os meandros de uma complexa causa sem excluir outros da mesma incumbência, admitindo que os que com ele(a) concorrem podem ter diferente conclusão e que até pode ser mais convincente do que a sua.

Primeiro, o perito não se encasula. Não chama a si o monopólio da sapiência. Franqueia as portas a outros que, como ele(a), possuem perícia no assunto. Segundo, num gesto de franqueza que é, ao mesmo tempo, de humildade intelectual, o perito não chama a si o monopólio da verdade. Abre o flanco a outra hermenêutica e admite a hipótese de uma perspetiva diferente da sua ser mais bem capacitada. O perito avisa que o demandante da perícia deve ter o cuidado de sondar perícias diferentes. 

Nestes tempos em que a verdade se enquista no monolitismo do olhar de quem a garante, esta advertência é um oásis. Num tempo em que tanto dominam os ascetas dos imperativos categóricos, em que os adversários são humilhantemente despromovidos para desfazer os seus olhares à insignificância, ter quem admita que há perícia melhor é quase insólito. É tão raro alguém dizer: “está é a minha verdade, mas pode haver quem ofereça uma verdade mais convincente.”

Até que os pés têm de aterrar. Para se apurar que a fórmula “salvo melhor opinião” contém a negação do enunciado. Quando um perito usa este enunciado, acaba por despromover à irrelevância a visão que seja diferente da sua. É o contrário de um gesto de humildade intelectual. Ao advertir que possivelmente existe opinião melhor do que a sua, o perito não esconde que não existe opinião que seja melhor. Existe perícia diferente, mas a sua é melhor. Pois ele(a) trata, após a fórmula inaugural em que endossa a possibilidade de melhor opinião, de articular a argumentação que robustece a sua ideia e desconstrói as ideias que se lhe opõem. Às vezes, recorrendo a argumentos que devastam as ideias opostas. 

Quando um perito avisa, logo a abrir a sua argumentação, “salvo melhor opinião”, esconde uma vaidade nos contrafortes da falsa humildade. Em vez do fingimento, deviam omitir o “salvo melhor opinião”. Pois, do alto da sua torre de marfim, ungidos pela convicção da sua sapiência, estes peritos não admitem que haja opinião melhor do que a sua. 

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