Um assalto à caligrafia: a assinatura, ilegível, coloniza o seu espaço no papel. O documento fica lacrado com o assinado, mesmo que esteja ilegível. Não é preciso saber o nome de quem assinou; é bastante o formalismo da assinatura – um pasto fácil para a fraude.
Não se impreca a caligrafia pobre que impede a identificação da assinatura. Nem se congemina sobre a intenção (terá o assinante feito de propósito, para o nome não ficar lavrado no papel que carece de caução?). O direito à caligrafia é inalienável.
A assinatura ilegível é aval do anonimato. É um sarrabisco, um amontoado de caracteres indistintos, a distorção da legibilidade. Alguém assinou o documento, atestando a autenticidade, permitindo a produção dos seus efeitos. Se for preciso pedir responsabilidades a quem selou o contratado, não será possível. Se o nome na assinatura ilegível não for dos outorgantes, mas apenas de uma autoridade que viabiliza o documento, o anonimato ornamenta a irresponsabilidade do ato.
Dizem que os médicos são vezeiros na caligrafia ilegível. O povo até diz, em tom a meias entre o jocoso e o perplexo, “tem letra de médico”. Parece que usam um alfabeto diferente. Num punhado de frases, não se consegue discernir uma palavra. Mais parece uma obra de arte, na categoria abstracionismo, do que um texto, uma mensagem. Em analogia, faz lembrar aqueles que produzem um discurso gongórico. O emaranhado de palavras e a soliloquia não cumprem os requisitos da mensagem que a audiência consegue auditar. Há quem diga que fazem de propósito, justapondo a assinatura ilegível a um discurso que pretendem erudito e inacessível ao cidadão comum. Há quem diga que nem eles entendem o discurso com a sua assinatura ilegível, perdendo o mote e a bússola ao fim de uma frase que se arrasta por tempo a fio.
Outros sugerem que a assinatura é o espelho da personalidade. Falta saber que paridade estabelecem estes peritos com a assinatura ilegível. Será alguém que esconde a personalidade atrás de uma cortina de sombras? Ou apenas alguém que oculta os meandros do ser para ser tido como uma personagem misteriosa, que provavelmente apetecerá revistar? Ou é apenas a preguiça de alguém que não obtém uma caligrafia reconhecível?
Pode haver que tenha uma coleção de assinaturas e algumas sejam ilegíveis. O que depende do estado de espírito e do dia que se pôs a preceito ou despreceito. Como polissemia de personalidades.
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