3.3.21

Raio X

Nick Cave & Warren Ellis, “Carnage”, in https://www.youtube.com/watch?v=3eXtxv1nhwI

A parede dura não pode estilhaçar. Arrumam-se os relógios a um canto, contra as probabilidades da memória. Do tempo sentido, aquele tempo que parecia não ter nada a dizer, sussurram ameaças que se propõem como vãs. Não é um raio X que abre o abismo sob os pés. É o chão, se estiver em falta.

Pergunto ao sangue o que conta. Espero pelas veias limpas, hipótese que se agiganta no crepúsculo por onde espreitam as palavras. Do ontem já não lembro se não que foi ontem. Povoo o olhar com os fragmentos bucólicos da paisagem, um arrepio que serve de tumulto para o corpo. A desobediência não serve de caução. É uma tirania que toma conta do tempo, anestesia que adia a matéria em ebulição. O contágio da noite tumultuosa estende-se ao demais dia, por mais que o sumo interior peça para o corpo se desemaranhar de um prazo de validade.

Às vezes, parece que são imprescritíveis os desmodos dos tempos havidos. Não há preces que revejam a matéria já fundida. Não se quer que seja recuperável, essa matéria; se houver direito a uma súplica, ela que seja na forma de um esquecimento, para que nada sobre do tempo pretérito a não ser um corpo e um pensamento, fecundos, virados para o tempo presente. Como se, submetidos a um zero iniciático, o corpo e o pensamento estivessem prontos para o humilde reaprender.

Opõe-se um senão: o raio X iniciático seria a negação de tudo o que trouxe até ao tempo presente. Não se ilide quem se é por um fortuito eclipsar do formato conhecido. Não se volta ao zero sem o esquecimento do futuro. O raio X transparece as consumições, não é um ato caritativo que habilita uma cura. Não se pode ir ao fundo do poço e apagar das suas paredes as pegadas deixadas em património. Pode-se convocar o tempo presente para administrar, em doses homeopáticas, o remédio do futuro. 

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