22.3.21

Os frutos em espera

The Waterboys, “A Pagan Place”, in https://www.youtube.com/watch?v=tfXGt2MtSs8

Aproveitam o orvalho da madrugada para espigar. Os frutos, sublimes obras sem criador, levantam a primavera. Fazem coro com ela. As pessoas atentas já sabiam que os frutos se anunciavam quando as árvores, um pouco a destempo, explodiram em formosas flores. 

São as mesmas pessoas que contam os dias do avesso, até que a primavera por fim despoje o inverno. Andam à procuram das meticulosas árvores que não desdenham o sol extemporâneo que se evade do assédio invernal. É um exílio para os frutos, que esperam por vez enquanto as árvores se entregam ao paradoxal resguardo do inverno através da sua nudez. 

Por dentro da sua seiva, as árvores sentem o congeminar dos frutos. São ainda frutos em potência, frutos que hão de ser quando espreitarem os primeiros laivos de primavera que dizem, a quem quiser ouvir, que podem devolver os agasalhos aos armários onde se amontoam os despojos do inverno. Os frutos circulam pela seiva. Não se enganam no labirinto das árvores, até tomarem forma na embocadura dos ramos. Esperam, até que os seus dedos irrompam pelos poros da árvore.

As pessoas esperam os frutos que esperam pela sua vez. Como destilam a espera pela primavera. Quando chegam os frutos, a primavera já não é precoce. Mas atiram-se aos frutos como se ainda ontem fosse inverno. Esperam pelos frutos como os frutos esperam pela primavera para terem vez. A extravagância dos frutos é, na posse das pessoas, como a libertação do bojo do inverno. Saciam-se da hibernação forçada. Os frutos sabem-lhes como o dia em que um povo se emancipa do tirano.

Às vezes, os frutos em espera são atraiçoados por primaveras que se antecipam, metendo uma unha no calendário que ainda pertence ao inverno. Fruem antes do tempo. As pessoas inebriam-se. Acreditam que a temporada do inverno emagreceu, deixando mais tempo para a primavera. Às vezes, é uma armadilha. Um golpe de asa do inverno, talvez a destempo, e os frutos que estavam a lobrigar, precocemente extintos, têm de adiar a espera. Até à primavera que se seguir. 

O tempo não se adianta ao tempo.

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