9.3.21

Câmara de ecos

Massive Attack, “Bela Lugosi’s Dead” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=GGCk-_cz00U

Havia um labirinto que nunca percebeu. Um prémio sem proeza para os audazes que participavam na emenda da loucura. Por mais que desembaciasse os olhos das arestas improváveis, ciciava as demandas a deuses sem rosto. Algum há de estar de atalaia – murmurava, enquanto compunha a pauta da superstição.

Logo ele, que não admitia um lugar no vocabulário para a superstição. Por vezes, a verosimilhança dos pesadelos é assustadora. É como se uma câmara de ecos descarnasse o campo de visão e as suas vozes sobrepostas, um todo caótico, sem sentido, ajuramentassem uma gramática que faz lembrar um idioma estrangeiro, ininteligível. A recusa do sobressalto combinava com a solidão interior. Não me intimidam estes vultos arcaicos – jurava, enquanto arrumava o oráculo do passado debaixo do cais.

Logo ele, que não tinha trela sobre o passado porque se convencera que o passado não podia causar danos. E, no entanto, havia uma certa vertigem animada pelos pesadelos sem freio que se compunham a partir da partitura do passado. Podia ser que a maresia fosse sedativa. Mas o mar não estava de modas. Um levantamento contra a presunção da temperança tomara conta da paisagem. Até os pássaros que tentam a sorte, siando sobre o mar como pescadores adestrados, estavam exilados. Não são as ondas desordeiras que me fazem desistir do mar – garantia, intransigente com o medonho estado de alma do mar.

Logo ele, que se recusava a dizer “mau tempo”, erodindo as convenções, porque o que dizem ser “mau tempo” é a manifestação sublime dos elementos indomáveis. Esteve um tempo – não sabe quanto – a apreciar a coreografia das ondas que pareciam querer dizer que uma dor sem limites consumia a alma. Por dentro das sucessivas camadas de mar derrotadas pelos penedos havia câmaras de ecos que desenhavam poemas epopeicos. Seriam os fantasmas de náufragos a coligir os atritos do futuro, deixando-os em memória para quem se detivesse a contemplar o mar iracundo. 

Colou o ouvido às paredes do vento que era arrastado até aos penedos, contra a sua vontade. O entardecer subitamente sombrio não era metáfora cantante. Os ecos dispunham-se numa pauta cautelar, e as sílabas, pacientemente possuídas, ensinavam o proveito das manhãs sucessivas. 

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