16.3.21

Cheque em branco


 Acid Arab, “Club DZ”, in https://www.youtube.com/watch?v=GY2lTWaRIgk

I

Pedra e cal. O avental que se estendia sobre a mesa estava de pedra e cal. As vozes faziam-se ouvir. Sobrepunham-se. Não havia gramática que valesse em tamanha cacofonia. Os que estavam em silêncio acenavam com a cabeça em sinal de consentimento. Passavam um cheque em branco às vozes tartamudeadas. Consentiam-se como figurantes apáticos à mercê das vozes imprecisas.

II

A confiança tinha de ser cega. De outro modo, não era confiança. Não há meio termo entre a desconfiança e a confiança. Nem a confiança quadra com graus e escalas. Ele desafiava: “fecha os olhos e confia em mim.” Não sabia o que vinha a seguir; era apenas um teste à confiança. Ela fechou os olhos. Confiava tanto que endossou um cheque em branco, apenas com a sua assinatura a despedaçar a letargia do documento. Como paga, ele pegou no cheque e rasgou-o em dezasseis pequenos pedaços. Disse-lhe: “podes abrir os olhos”, enquanto dirigia o olhar dela para o chão, onde jaziam os dezasseis pedaços em que o cheque se transformara.

III

Um gato vadio prescreve as intimidades. Recusa pessoas. Descombina-se com elas, habitando as ruas quando a noite endereça as pessoas para as suas casas. Dizem que os gatos vadios não podem confiar nas pessoas. É o ónus de serem maltratados pelas pessoas que desabilitam os gatos. Para elas, a coabitação é um descontrato. Se pudessem, extinguiam os gatos (os vadios e os outros, em homenagem ao princípio da igualdade, ou à mercê da sua irrisória crueldade). Para sobreviverem, os gatos não assinam cheques em branco.

IV

A selva mais seletiva é a que habitam as pessoas quando trabalham. Jogam-se umas contra as outras, numa concorrência que não tem regras de conduta. Não confiam, nem naqueles em que aparentemente podem confiar. Não é infrequente que o primeiro assestar do punhal parta de alguém que não figurava nas primeiras escolhas. As pessoas movem-se no xadrez das conveniências, das jogadas oportunistas, tecendo-se em sua insuspeita hipocrisia. Fingem. E fingem que fingem, para ludibriarem melhor (ou se protegerem de outros ainda melhores na dissimulação). A última cartada que jogariam, seria um cheque (e muito menos em branco).

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