5.3.21

Consoante muda (short stories #302)

LCD Soundsystem, “Daft Punk Is Playing at My House” (live”, in https://www.youtube.com/watch?v=nCbNTGCB_vg

          As palavras abatem-se, espessas, sobre a pele nua. São como uma chuva que decanta as cicatrizes que o dia deixou tatuadas na pele. As palavras obedecem a critérios. Escolhem-se. As que ajudam a contemplar a impureza. As que fogem dos comboios tumultuosos que não param nos apeadeiros. As que têm vista para o mundo, como se fossem a sua varanda. As que mobilizam a objeção de consciência. As palavras apátridas, na procuração de uma pertença a que se quer fugir. As que sitiam o fautor, mastins disfarçados de lobos mansos. Jogam-se todas essas palavras no intempestivo campo onde uma gramática sem penhor é o húmus que as espera. Muda-se uma palavra, aqui e ali, no julgamento de que combina melhor do que a substituída. Estas não são desprezadas. Mais tarde podem ter valimento. Os olhos revisitam as palavras eleitas. Hesitam. As mãos rebeldes rasgam a folha; ou, em versão digital, os dedos furiosos operam Ctrl+Alt+Delete. Volta-se à forma inicial. À originalidade da folha em branco. Os olhos fechados convocam novas palavras. É a mudez que as habilita, enquanto voam, dispersas, pela tela que é pano de fundo dos olhos fechados. Às vezes, é um exercício mental, sem folha à mão de semear, sem o computador por perto para processar as palavras inventariadas. Recuperam-se os fragmentos da folha rasgada; ou o ficheiro antes de ter sido apagado. O metódico arregimentar das palavras exige a comparação. Pode ser que a segunda folha – o segundo ficheiro – tenha o mesmo destino e o pensamento regresse ao vazio da casa de partida. Ou não: a imperfeição das palavras angariadas não é intransigente. É inata. Um magma que se transfere para as palavras. Corporizando a mais perfeita impureza que se traduz na insuficiência das palavras. Pois há consoantes que são mudas e nem assim se mudam. 

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