Foram poucos dias em Atenas. Os suficientes para a desilusão. Atenas é uma grande metrópole, onde os efeitos da concentração populacional se fazem sentir. Mais de 40% da população grega vive em Atenas e arredores, numa grande mancha de edifícios bem visível de qualquer ponto cimeiro da cidade. A cidade está encaixada num amplo vale, cercado de montes onde a aridez é a nota dominante. Quando, do alto do monte onde os antigos gregos edificaram o Partenon, o olhar se perde no firmamento vêm-se edifícios e mais edifícios, numa vasta mancha esbranquiçada que apenas tem fim quando a planície é vencida pelas colinas que começam a empinar vertiginosamente.
Da visita a Atenas guardo algumas imagens marcantes. O trânsito caótico, como nunca antes tinha visto. Os carros seguem numa sofreguidão estonteante, como se estivessem numa frenética corrida contra o tempo, como se um segundo de atraso fosse um atalho para um precipício sem saída. As buzinas fazem-se ouvir com frequência, aqui e ali salpicadas por gritos de condutores exaltados que protestam contra os malabarismos de motociclistas endiabrados.
Ao andar pelas ruas, onde quer que fosse, sempre carros e mais carros, pequenas motas conduzidas por jovens sem capacete, polícias a fazer de sinaleiros para controlar o tráfego, apesar dos semáforos que continuavam a funcionar. O que acaba por ser pitoresco: habituamo-nos a conviver com semáforos, como sinal da inutilidade dos sinaleiros. Tínhamos sinaleiros nos cruzamentos sem semáforos que precisavam da sua sinalética para um trânsito fluído. Atenas retrata outra realidade. Os semáforos não chegam para o trânsito. Precisam da ajuda dos polícias que, por engenho da necessidade, fazem também de sinaleiros.
Com os primeiros dias de calor a causticarem as atenienses, o primeiro sinal da canícula abrasadora que se anuncia vem da natureza. Claro que as pessoas trajam roupas aligeiradas, para uma melhor sudação. Mas são os cães, os muitos cães que vagueiam pelas ruas de Atenas, a melhor ilustração do calor seco que aqui faz. Pela tarde, é vê-los extenuados pela canícula, procurando locais sombrios para repousarem. Estendem-se no chão, sabiamente procurando superfícies mais frescas para refrescar os corpos.
Uma ida a Atenas exige uma subida à Acrópole, afinal o emblema da cidade. É sobretudo na visita à Acrópole que a decepção se acentua. Por comparação com Roma, outra cidade que é um museu vivo, com tantas pedras que testemunham o passado vivido há mais de dois mil anos. A comparação é desfavorável devido ao estado de conservação dos monumentos.
Na parte baixa da Acrópole o que se vê são apenas ruínas. Um montão de pedras acumuladas sinaliza o local onde outrora repousaram edifícios imponentes, a ajuizar pelos mapas que estão espalhados pelo recinto que levam o visitante a reproduzir mentalmente a imagem do que foi o local nos seus tempos áureos. O ponto alto coincide com o Partenon, que bem no alto da colina é a imagem mais marcante da Atenas gloriosa. O monumento é apenas um retrato desgastado dos postais, com grande parte das colunas derrubada, feita num amontoado de pedras que jaz nas imediações para trabalhos de conservação. Os andaimes das obras de conservação desfeiam o monumento.
Dei comigo a pensar: como pôde a estupidez humana permitir que o tempo fosse consumindo estes monumentos. Porventura só vivendo no tempo em que estes monumentos foram votados à decadência é que permitira perceber a negligência. Uma tentativa de resposta estará no simbolismo do passado, de um passado derrotado e que não deixou boas recordações para quem venceu a civilização acabada de vergar. Terá sido assim que os romanos vilipendiaram os tesouros da civilização grega. E terá sido assim que, na debandada dos romanos, também a sua marca foi destruída.
Nesses tempos os traços do passado não eram valorizados, os testemunhos de civilizações passadas eram deixadas ao abandono, como triunfante vestígio de que novas civilizações haviam saído vitoriosas. Deitando a perder os feitos que gerações anteriores tinham legado à humanidade. Bem sei que hoje, com tanto tempo de distância, é fácil fazer este julgamento. Mais ainda por uma geração que foi educada numa cultura de paz, e não numa cultura de guerra e de antagonismo civilizacional. Mas fica um rasto de decepção ao ver como foi possível deixar arruinar tesouros tão preciosos. Como fica também o pesar pela demora dos gregos (em comparação com os italianos) a perceber a riqueza dos tesouros que os seus antepassados delapidaram, levando mais tempo a recuperar o que ainda podia ser recuperado.
31.5.04
28.5.04
A flatulência do ex-ministro
Os que me conhecem mais de perto sabem que sou atacado por uma insanidade matinal: correr todos os dias, bem cedo, no Parque da Cidade. Não pensem que estou isolado nesta maluqueira. Não há um único dia em que não me cruze com pessoas que já vejo como companheiros de corrida – ainda que eles vão no sentido oposto ao meu. Desenganem-se os que acreditam que este acto tresloucado é um deserto de experiências enriquecedoras.
O episódio que vou relatar já se passou há alguns meses. Lembrei-me dele, de repente, quando fazia os exercícios matinais que antecedem mais uma corrida que desbrava as veredas do parque. Num dia de verão, já no fim da corrida, no período de descompressão, avistei um senhor alto, esguio, de óculos, ligeiramente careca, que tinha acabado de chegar ao parque. Quando me cruzei com ele fui assaltado pela dúvida. Era uma cara que me era conhecida. Com a dificuldade que tenho para associar caras a pessoas logo à primeira tentativa, só passado alguns minutos é que descobri que se tratava de um ex-ministro do último governo do engenheiro Guterres.
Acontece frequentemente, quando me cruzo com caras que me parecem familiares. A reacção instintiva é a de ter a sensação de que aquela cara é mesmo parecida com o tal fulano que é figura pública. Nunca faço a associação imediata entre a cara e a pessoa conhecida do público. Só passado alguns instantes é que concluo que, afinal, aquela cara pertence mesmo à pessoa que é uma figura pública.
Algo de hilariante sucedeu naquela manhã. Afogueado pelos derradeiros momentos da minha corrida, tentava descomprimir, sossegando a batida do coração. Mesmo ao meu lado, aí a quinze metros, estava o ex-ministro deitado de barriga para cima na laje de granito que faz de beiral de um muro não muito alto. Por uns segundos deitado, como que ganhando coragem para os exercícios que tinha programado. À primeira elevação, senti um ruído estranho, mas ao mesmo tempo…familiar. O barulho vinha dos lados do ex-ministro, até porque para além de mim e da minha cadela, minha companhia nestas lides, mais ninguém se encontrava por perto. Mas como estava ainda extenuado com o sprint final, não liguei ao ruído. Talvez fosse um estalido de um ramo que, empurrado pela brisa matinal, se tivesse quebrado.
Não passaram muitos segundos até que o mesmo som se repetisse. Ao segundo abdominal, o mesmo ruído que tinha ecoado pelos meus ouvidos. Comecei a desfazer as dúvidas. Mas esperei pela terceira elevação, para não tirar conclusões precipitadas. E não é que à terceira elevação o mesmo som, vindo das profundezas intestinais do ex-ministro, dava uma sonoridade diferente à manhã do Parque da Cidade? Aí fiquei sem dúvidas. Até porque se seguiram mais alguns abdominais, que até à quinta tentativa foram sendo entrecortados pela ventosidade de sua eminência. Este senhor, que uns meses antes era digno representante do governo que nos desgovernou, não tinha controlo no esfíncter!
Mais do que ter ficado admirado, pus-me a pensar se a minha presença não era inibidora, se não era suficiente para ele controlar a flatulência matinal. Até pode acontecer que tivesse incontinência gasosa. Sucede aos melhores. Mas vendo que estava ali ao seu lado outro cidadão – porventura não tenho ar de cidadão respeitoso – podia o senhor ex-ministro ter alguma contenção.
Afinal de contas, aquele despautério era a ilustração da sanha maldita do governo de que ele fez parte: sem respeito para com quem era governado, na esteira do desvario, do desatino, um governo sem rumo nem destino que acabou por ter o final que merecia. Ou então o senhor ex-ministro adivinhou que na sua presença estava um intransigente adversário do universo socialista…
Lanço a adivinha, para quem a queira fazer a sua aposta: de quem estou a falar?
(Em Atenas)
O episódio que vou relatar já se passou há alguns meses. Lembrei-me dele, de repente, quando fazia os exercícios matinais que antecedem mais uma corrida que desbrava as veredas do parque. Num dia de verão, já no fim da corrida, no período de descompressão, avistei um senhor alto, esguio, de óculos, ligeiramente careca, que tinha acabado de chegar ao parque. Quando me cruzei com ele fui assaltado pela dúvida. Era uma cara que me era conhecida. Com a dificuldade que tenho para associar caras a pessoas logo à primeira tentativa, só passado alguns minutos é que descobri que se tratava de um ex-ministro do último governo do engenheiro Guterres.
Acontece frequentemente, quando me cruzo com caras que me parecem familiares. A reacção instintiva é a de ter a sensação de que aquela cara é mesmo parecida com o tal fulano que é figura pública. Nunca faço a associação imediata entre a cara e a pessoa conhecida do público. Só passado alguns instantes é que concluo que, afinal, aquela cara pertence mesmo à pessoa que é uma figura pública.
Algo de hilariante sucedeu naquela manhã. Afogueado pelos derradeiros momentos da minha corrida, tentava descomprimir, sossegando a batida do coração. Mesmo ao meu lado, aí a quinze metros, estava o ex-ministro deitado de barriga para cima na laje de granito que faz de beiral de um muro não muito alto. Por uns segundos deitado, como que ganhando coragem para os exercícios que tinha programado. À primeira elevação, senti um ruído estranho, mas ao mesmo tempo…familiar. O barulho vinha dos lados do ex-ministro, até porque para além de mim e da minha cadela, minha companhia nestas lides, mais ninguém se encontrava por perto. Mas como estava ainda extenuado com o sprint final, não liguei ao ruído. Talvez fosse um estalido de um ramo que, empurrado pela brisa matinal, se tivesse quebrado.
Não passaram muitos segundos até que o mesmo som se repetisse. Ao segundo abdominal, o mesmo ruído que tinha ecoado pelos meus ouvidos. Comecei a desfazer as dúvidas. Mas esperei pela terceira elevação, para não tirar conclusões precipitadas. E não é que à terceira elevação o mesmo som, vindo das profundezas intestinais do ex-ministro, dava uma sonoridade diferente à manhã do Parque da Cidade? Aí fiquei sem dúvidas. Até porque se seguiram mais alguns abdominais, que até à quinta tentativa foram sendo entrecortados pela ventosidade de sua eminência. Este senhor, que uns meses antes era digno representante do governo que nos desgovernou, não tinha controlo no esfíncter!
Mais do que ter ficado admirado, pus-me a pensar se a minha presença não era inibidora, se não era suficiente para ele controlar a flatulência matinal. Até pode acontecer que tivesse incontinência gasosa. Sucede aos melhores. Mas vendo que estava ali ao seu lado outro cidadão – porventura não tenho ar de cidadão respeitoso – podia o senhor ex-ministro ter alguma contenção.
Afinal de contas, aquele despautério era a ilustração da sanha maldita do governo de que ele fez parte: sem respeito para com quem era governado, na esteira do desvario, do desatino, um governo sem rumo nem destino que acabou por ter o final que merecia. Ou então o senhor ex-ministro adivinhou que na sua presença estava um intransigente adversário do universo socialista…
Lanço a adivinha, para quem a queira fazer a sua aposta: de quem estou a falar?
(Em Atenas)
27.5.04
Manifesto anti-euforia
Tinha feito uma promessa – não escrever sobre futebol. Porque me causa repugnância o protagonismo que o futebol tem, porque há gente de mais que vive em função do futebol, porque existe uma cumplicidade grotesca entre a política e o futebol que permite aos agentes do futebol coisas que são vedadas ao comum dos mortais. E por muitas outras razões que seria fastidioso enunciar.
Mas hoje é inevitável escrever sobre futebol, depois do clube da terra ter ganho uma importante competição europeia. É inevitável, mas não pelas razões politicamente correctas. Fiquei feliz pela vitória do clube da terra? Não, não fiquei. Pelo contrário, fiquei irritado, contristado, macambúzio, exangue de orgulho, carente de motivos para me identificar com os meus conterrâneos. Afinal o Mónaco é um local idílico para se viver, onde não se paga impostos (há melhor motivação?). Daí ser adepto potencial do Mónaco.
Há uma grande confusão que paira no ar nos dias que correm. Os feitos desportivos (não de todos os desportos, só daquele que congrega as preferências do povo) são a versão contemporânea das conquistas marítimas de outrora. São esses os feitos que hoje enobrecem o país, ou parte dele. Como se o país tivesse obrigatoriamente que se rever nas façanhas desportivas deste ou daquele, ou de um grupo de desportistas que defendem a mesma camisola, que são apresentados como o espírito vivo de uma cidade, de uma região. Ontem, mesmo, como o espírito vivo de um país inteiro. Como se fosse imperativo categórico de todos os portugueses estar ao lado do clube da minha terra, como se ontem todos tivéssemos que envergar de azul e branco. Em nome de Portugal, diriam os que não se revêem naquela filiação clubista, como argumento poderoso para torcer por aquelas cores.
Sempre me causaram espécie as iniciativas que empurram a população para uma necessária unanimidade em torno de uma causa. Nunca me dei bem com os comportamentos impostos porque é bom-tom encarreirar pela tendência dominante. Os guardadores do rebanho, aqueles que aparecem em público a ditar as regras de comportamento, são pessoas a quem não são reconhecidos atributos éticos para conduzir os fiéis devotos que compõem o rebanho.
Esta repugnância é congénita. Talvez seja a minha rebeldia latente a vir à superfície. Porventura fala aqui mais alto a veia individualista que lateja, bem viva, dentro de mim. É por isso que desconto o argumento do apoio ao clube da terra, quanto mais não seja “por representar o país”. Noutras circunstâncias fui levado a concluir que o meu país não é Portugal. A minha família e os meus amigos são o meu país. Logo, aquele argumento que convoca o apoio necessário pela representação nacional cai pela base.
Até porque em todos estes anos de vida, todos passados nesta cidade, fui apreendendo a conviver com os exageros dos adeptos deste clube, com a cegueira clubista que incendia ódios, com a forma exacerbada como se colocam ao lado do seu clube e nada mais vêm à sua frente, toldando a razão e deixando vir ao de cima uma emoção primária. Estou cansado da retórica oficial, patrocinada por tantos políticos sempre dispostos a prestar vassalagem à sinistra personagem que lidera este clube. A retórica oficial que vinca a necessária identificação entre o clube e a cidade, indo mais longe na ambição de tecer um vínculo indentitário entre a cidade e todas as regiões que desprezam o centralismo excessivo da Lisboa capital.
Cansado do timoneiro desta agremiação (sim, timoneiro: ou como se qualificam as criaturas que vencem eleições com 99,3% dos votos? Faz lembrar Cuba, o Iraque de Saddam, etc.), espelho do mais tenebroso que existe no meio desportivo nacional, senhor de uma verborreia que caustica adversários, destruindo impiedosamente todos aqueles que não se curvam perante si. Quando destila o seu palavreado é como se tratasse de uma encíclica papal avidamente consumida em cada palavra pelos seguidores possuídos de uma fidelidade canina.
Para cúmulo da desidentificação, este clube teve um treinador arrogante, vaidoso, prepotente, narcísico, anti-desportivo, sectário. Uma pessoa que teve o desplante de produzir a seguinte afirmação (que ouvi num noticiário matinal): “daqui a cem anos, serei dos poucos treinadores portugueses que ganharam a Liga dos Campeões. Daqui a cem anos o meu nome será o único a figurar nos eleitos que ganharam a Taça UEFA e a Liga dos Campeões”. Afirmações deste calibre dizem tudo sobre o ego doentio da personagem.
Agora todos teremos que carregar um sticker na memória para não esquecermos da evidência enfatizada pelo senhor que vai deixar de treinar esta equipa. E passar o sticker às gerações futuras, para que nunca se esqueçam deste feito que traz riqueza e grandeza ao país, que o transporta para os píncaros do desenvolvimento entre os parceiros da União Europeia. Esta pessoa, vestindo uma vaidade incomparável, deve estar a congeminar no seu íntimo que merece ir parar ao Panteão Nacional quando deixar o mundo dos vivos. Por enquanto parece que vai trabalhar para Inglaterra. Paz à sua alma. Que vá e não volte. E que tenha muitos insucessos na sua vida profissional, para ver se cresce como pessoa.
Já estou a ver as cenas dos próximos capítulos. Amanhã, Miguel Sousa Tavares, o “taliban do norte”, publicará um apaixonado artigo de opinião a louvar os feitos desportivos do clube do seu coração. Se o fizer como no ano passado, depois de outra vitória europeia conquistada em Sevilha, o taliban do norte será o ideólogo oficial da linha politicamente correcta que impõe a vassalagem nacional perante as conquistas do clube da terra. Eu não estarei entre esses. Para minha desdita, estou votado à dissidência.
Orgulho? Sim tenho orgulho por dentro de horas estar de viagem para Atenas, para bem longe destas paragens preenchidas por hordas inebriadas pela conquista desportiva. Como se ela fosse a mola que impulsiona a felicidade das pessoas, passando por cima das condições materiais que ainda nos faltam para podermos rivalizar com o resto da Europa onde estamos integrados.
Porque a vida não é futebol, nem o futebol resume a vida que vivemos.
Mas hoje é inevitável escrever sobre futebol, depois do clube da terra ter ganho uma importante competição europeia. É inevitável, mas não pelas razões politicamente correctas. Fiquei feliz pela vitória do clube da terra? Não, não fiquei. Pelo contrário, fiquei irritado, contristado, macambúzio, exangue de orgulho, carente de motivos para me identificar com os meus conterrâneos. Afinal o Mónaco é um local idílico para se viver, onde não se paga impostos (há melhor motivação?). Daí ser adepto potencial do Mónaco.
Há uma grande confusão que paira no ar nos dias que correm. Os feitos desportivos (não de todos os desportos, só daquele que congrega as preferências do povo) são a versão contemporânea das conquistas marítimas de outrora. São esses os feitos que hoje enobrecem o país, ou parte dele. Como se o país tivesse obrigatoriamente que se rever nas façanhas desportivas deste ou daquele, ou de um grupo de desportistas que defendem a mesma camisola, que são apresentados como o espírito vivo de uma cidade, de uma região. Ontem, mesmo, como o espírito vivo de um país inteiro. Como se fosse imperativo categórico de todos os portugueses estar ao lado do clube da minha terra, como se ontem todos tivéssemos que envergar de azul e branco. Em nome de Portugal, diriam os que não se revêem naquela filiação clubista, como argumento poderoso para torcer por aquelas cores.
Sempre me causaram espécie as iniciativas que empurram a população para uma necessária unanimidade em torno de uma causa. Nunca me dei bem com os comportamentos impostos porque é bom-tom encarreirar pela tendência dominante. Os guardadores do rebanho, aqueles que aparecem em público a ditar as regras de comportamento, são pessoas a quem não são reconhecidos atributos éticos para conduzir os fiéis devotos que compõem o rebanho.
Esta repugnância é congénita. Talvez seja a minha rebeldia latente a vir à superfície. Porventura fala aqui mais alto a veia individualista que lateja, bem viva, dentro de mim. É por isso que desconto o argumento do apoio ao clube da terra, quanto mais não seja “por representar o país”. Noutras circunstâncias fui levado a concluir que o meu país não é Portugal. A minha família e os meus amigos são o meu país. Logo, aquele argumento que convoca o apoio necessário pela representação nacional cai pela base.
Até porque em todos estes anos de vida, todos passados nesta cidade, fui apreendendo a conviver com os exageros dos adeptos deste clube, com a cegueira clubista que incendia ódios, com a forma exacerbada como se colocam ao lado do seu clube e nada mais vêm à sua frente, toldando a razão e deixando vir ao de cima uma emoção primária. Estou cansado da retórica oficial, patrocinada por tantos políticos sempre dispostos a prestar vassalagem à sinistra personagem que lidera este clube. A retórica oficial que vinca a necessária identificação entre o clube e a cidade, indo mais longe na ambição de tecer um vínculo indentitário entre a cidade e todas as regiões que desprezam o centralismo excessivo da Lisboa capital.
Cansado do timoneiro desta agremiação (sim, timoneiro: ou como se qualificam as criaturas que vencem eleições com 99,3% dos votos? Faz lembrar Cuba, o Iraque de Saddam, etc.), espelho do mais tenebroso que existe no meio desportivo nacional, senhor de uma verborreia que caustica adversários, destruindo impiedosamente todos aqueles que não se curvam perante si. Quando destila o seu palavreado é como se tratasse de uma encíclica papal avidamente consumida em cada palavra pelos seguidores possuídos de uma fidelidade canina.
Para cúmulo da desidentificação, este clube teve um treinador arrogante, vaidoso, prepotente, narcísico, anti-desportivo, sectário. Uma pessoa que teve o desplante de produzir a seguinte afirmação (que ouvi num noticiário matinal): “daqui a cem anos, serei dos poucos treinadores portugueses que ganharam a Liga dos Campeões. Daqui a cem anos o meu nome será o único a figurar nos eleitos que ganharam a Taça UEFA e a Liga dos Campeões”. Afirmações deste calibre dizem tudo sobre o ego doentio da personagem.
Agora todos teremos que carregar um sticker na memória para não esquecermos da evidência enfatizada pelo senhor que vai deixar de treinar esta equipa. E passar o sticker às gerações futuras, para que nunca se esqueçam deste feito que traz riqueza e grandeza ao país, que o transporta para os píncaros do desenvolvimento entre os parceiros da União Europeia. Esta pessoa, vestindo uma vaidade incomparável, deve estar a congeminar no seu íntimo que merece ir parar ao Panteão Nacional quando deixar o mundo dos vivos. Por enquanto parece que vai trabalhar para Inglaterra. Paz à sua alma. Que vá e não volte. E que tenha muitos insucessos na sua vida profissional, para ver se cresce como pessoa.
Já estou a ver as cenas dos próximos capítulos. Amanhã, Miguel Sousa Tavares, o “taliban do norte”, publicará um apaixonado artigo de opinião a louvar os feitos desportivos do clube do seu coração. Se o fizer como no ano passado, depois de outra vitória europeia conquistada em Sevilha, o taliban do norte será o ideólogo oficial da linha politicamente correcta que impõe a vassalagem nacional perante as conquistas do clube da terra. Eu não estarei entre esses. Para minha desdita, estou votado à dissidência.
Orgulho? Sim tenho orgulho por dentro de horas estar de viagem para Atenas, para bem longe destas paragens preenchidas por hordas inebriadas pela conquista desportiva. Como se ela fosse a mola que impulsiona a felicidade das pessoas, passando por cima das condições materiais que ainda nos faltam para podermos rivalizar com o resto da Europa onde estamos integrados.
Porque a vida não é futebol, nem o futebol resume a vida que vivemos.
26.5.04
Política e confiança: limitada aos partidos?
O último congresso do PSD quase passou despercebido. O povo esteve concentrado nas movimentações mediáticas de Madrid, com o “casamento real” que lá ocorreu. E também porque este congresso tinha um resultado antecipado, um vencedor adivinhado à partida.
A maior parte dos comentadores políticos teceu duras críticas à acefalia que invadiu Oliveira de Azeméis. Argumentam que um congresso partidário deve discutir ideias e projectos. Que o unanimismo se afasta da dinamização que sempre foi timbre deste partido. Não quero discutir se este congresso foi diferente ou igual, melhor ou pior do que congressos passados. O espectáculo dos congressos partidários (sejam de que partido forem) é aspecto que passa ao lado da minha atenção. O meu tempo é dedicado a coisas mais gratificantes.
Não perdi meia dúzia de minutos a espreitar de soslaio para as imagens que relatavam os acontecimentos de Oliveira de Azeméis. Só por coincidência deparei com notícias do congresso, por ter involuntariamente visto as imagens televisivas que chocaram com o meu olhar. O que me levou a reflectir algum tempo foi uma declaração que vi transcrita num jornal. Durão Barroso enfatizava um pedido aos congressistas que eram destinatários dessa alocução: “confiem em mim”, lançou à audiência. Eis uma matéria para demorada análise. Políticos e confiança, confiança e partidos políticos, ou a confiança pedida (sobretudo quando tem como remetente o primeiro-ministro) deve-se estender aos governados?
É verdade que os destinatários imediatos deste pedido teatralizado eram as pessoas que assistiam como congressistas. Mas aqui surge uma interrogação que parece não ter resposta lógica: se não se chegou a esboçar concorrência interna ao líder do PSD, o que o terá levado a atirar para cima da mesa um pedido de confiança dirigido aos membros do seu partido? Quando se pede que confiem em nós é porque tememos que os outros podem encontrar motivos para não confiar em nós. O que terá causado este súbito estrépito de insegurança que assaltou a consciência do líder do PSD? Não colhe aqui a tese de que a mensagem enviada era uma mensagem de tranquilidade. Como quem diz, “continuem a confiar em mim, vocês que em mim têm depositado a vossa confiança”. Porque, repito-o, invocar a confiança de outrem só faz sentido quando há razões para sentir que esse vínculo fiduciário foi abalado.
Os congressos partidários são, em grande medida, para consumo externo – ou seja, para que os eleitores em geral captem as mensagens que vêm de dentro dos congressos. Os partidos têm a consciência que é desta forma que fidelizam (ou afastam, quando as coisas correm mal) clientelas que depois constituem uma preciosa base eleitoral de apoio. As observações atrás feitas sobre a necessidade de convocar a confiança estendem-se à população em geral. Porque terá o primeiro-ministro enviado este sinal? Teme que vai perder as eleições para o Parlamento Europeu, receando que a oposição (e os eleitores) julguem nas urnas o desempenho do governo?
A apologia da confiança dos governados nos governantes é sinal de que um momento eleitoral se aproxima. Lamento que os laços fiduciários só sejam lembrados em vésperas de eleições. Ou seja, quando os políticos mais carecem da confiança dos eleitores. Depois do acto eleitoral, é o deserto de ideias. A confiança é deitada para trás das costas, podendo-se governar sem ter em atenção aqueles a quem se pediu um voto de confiança. E assim temos um processo político assimétrico, sem correspondência entre os deveres de quem governa e os direitos de quem é governado.
A maior parte dos comentadores políticos teceu duras críticas à acefalia que invadiu Oliveira de Azeméis. Argumentam que um congresso partidário deve discutir ideias e projectos. Que o unanimismo se afasta da dinamização que sempre foi timbre deste partido. Não quero discutir se este congresso foi diferente ou igual, melhor ou pior do que congressos passados. O espectáculo dos congressos partidários (sejam de que partido forem) é aspecto que passa ao lado da minha atenção. O meu tempo é dedicado a coisas mais gratificantes.
Não perdi meia dúzia de minutos a espreitar de soslaio para as imagens que relatavam os acontecimentos de Oliveira de Azeméis. Só por coincidência deparei com notícias do congresso, por ter involuntariamente visto as imagens televisivas que chocaram com o meu olhar. O que me levou a reflectir algum tempo foi uma declaração que vi transcrita num jornal. Durão Barroso enfatizava um pedido aos congressistas que eram destinatários dessa alocução: “confiem em mim”, lançou à audiência. Eis uma matéria para demorada análise. Políticos e confiança, confiança e partidos políticos, ou a confiança pedida (sobretudo quando tem como remetente o primeiro-ministro) deve-se estender aos governados?
É verdade que os destinatários imediatos deste pedido teatralizado eram as pessoas que assistiam como congressistas. Mas aqui surge uma interrogação que parece não ter resposta lógica: se não se chegou a esboçar concorrência interna ao líder do PSD, o que o terá levado a atirar para cima da mesa um pedido de confiança dirigido aos membros do seu partido? Quando se pede que confiem em nós é porque tememos que os outros podem encontrar motivos para não confiar em nós. O que terá causado este súbito estrépito de insegurança que assaltou a consciência do líder do PSD? Não colhe aqui a tese de que a mensagem enviada era uma mensagem de tranquilidade. Como quem diz, “continuem a confiar em mim, vocês que em mim têm depositado a vossa confiança”. Porque, repito-o, invocar a confiança de outrem só faz sentido quando há razões para sentir que esse vínculo fiduciário foi abalado.
Os congressos partidários são, em grande medida, para consumo externo – ou seja, para que os eleitores em geral captem as mensagens que vêm de dentro dos congressos. Os partidos têm a consciência que é desta forma que fidelizam (ou afastam, quando as coisas correm mal) clientelas que depois constituem uma preciosa base eleitoral de apoio. As observações atrás feitas sobre a necessidade de convocar a confiança estendem-se à população em geral. Porque terá o primeiro-ministro enviado este sinal? Teme que vai perder as eleições para o Parlamento Europeu, receando que a oposição (e os eleitores) julguem nas urnas o desempenho do governo?
A apologia da confiança dos governados nos governantes é sinal de que um momento eleitoral se aproxima. Lamento que os laços fiduciários só sejam lembrados em vésperas de eleições. Ou seja, quando os políticos mais carecem da confiança dos eleitores. Depois do acto eleitoral, é o deserto de ideias. A confiança é deitada para trás das costas, podendo-se governar sem ter em atenção aqueles a quem se pediu um voto de confiança. E assim temos um processo político assimétrico, sem correspondência entre os deveres de quem governa e os direitos de quem é governado.
25.5.04
Para que serve ser herói e patriota?
Por estes dias irrompeu a tempestade política em Itália. A esquerda e a direita estão divididas a propósito das exéquias de um italiano que foi sequestrado, e posteriormente assassinado, no Iraque. O senhor Quattrocchi terá dito, momentos antes de se despedir da vida, “vejam como morre um italiano”. Os sectores à direita viram em Quattrocchi um herói nacional, um símbolo vivo do patriotismo que cimenta a unidade nacional. A coligação de direita que está no governo logo se apressou a defender a realização de um funeral de Estado, com todas as honrarias inerentes. As esquerdas na oposição vieram contestar a ideia, sem contudo apresentarem argumentos sólidos. A não ser a necessidade de se insurgirem contra uma proposta que tem a chancela do governo.
Não me interessa entrar nos meandros na política doméstica italiana. Há, contudo, algumas ilações a retirar deste caso. Primeiro, uma vez mais a instrumentalização que os políticos se apressam a fazer de assuntos que dizem respeito ao íntimo das pessoas. O cidadão italiano foi morto há mais de um mês, com todo o sofrimento que lhe foi infligido, e o que a sua família foi obrigada a suportar. Os carrascos foram mais longe na ignomínia e retiveram o cadáver por mais de um mês. Só agora decidiram entregá-lo à Cruz Vermelha, para que a família possa velar os restos mortais e dar um funeral condigno.
A família e amigos de Quattrocchi deviam ser poupados a este cortejo grotesco de vaidades políticas, com os políticos de direita e esquerda a tentarem tirar partido (cada qual à sua maneira) da morte de uma pessoa. Num momento tão trágico, em que uma vida foi ceifada, não faz sentido senão respeitar o luto da família. Expor esse luto ao voyeurismo nacional, com o desfile inadmissível de declarações e contra-declarações, é o pior atentado que se pode cometer à memória de uma pessoa que já partiu do mundo dos vivos. O recato da família exigia por parte dos políticos mais contenção, mais pudor.
Em segundo lugar, a retórica utilizada pelas franjas à direita, que querem capitalizar em seu favor a transformação de Quattrocchi num herói nacional. Quem me conhece sabe da repulsa que as esquerdas me provocam, tanto pela ideologia em que se inspiram como pela acção que domina a sua agenda. Mas se não me revejo nas esquerdas, não estou, por exclusão de partes, situado à direita. Este episódio é a melhor prova de como a retórica utilizada pelas direitas me causa uma repugnância idêntica à que destilo em relação às esquerdas.
O aproveitamento demagógico que as direitas italianas estão a fazer do funeral de Quattrocchi é lamentável. O pretexto é o acto de heroísmo que foi interpretado como um chamamento ao patriotismo dos italianos. Um valor que costuma ser apregoado pelos sectores mais à direita, com as consequências bem conhecidas: superação do “eu” pelos valores do grupo (nação), sem grande diferença em relação ao colectivismo que marcou décadas de totalitarismo comunista, também ele baseado na subordinação do indivíduo perante o colectivo. Não é nesta direita que me revejo.
Terceiro, constatar que actos de heroísmo são uma estupidez desnecessária. Comportamentos que são a ocultação do indivíduo que se encerra em cada um de nós, para valorizar o todo onde nos inserimos, são uma perfeita inutilidade. O que ganhou Quattrocchi com aquela declaração, segundos antes de ser assassinado? Um estatuto de herói para a posteridade? Por quanto tempo dura esta posteridade? Daqui a um ano alguém se lembra do acto de coragem protagonizado por este italiano? Esta coragem poupou-lhe a morte?
Não me interessa entrar nos meandros na política doméstica italiana. Há, contudo, algumas ilações a retirar deste caso. Primeiro, uma vez mais a instrumentalização que os políticos se apressam a fazer de assuntos que dizem respeito ao íntimo das pessoas. O cidadão italiano foi morto há mais de um mês, com todo o sofrimento que lhe foi infligido, e o que a sua família foi obrigada a suportar. Os carrascos foram mais longe na ignomínia e retiveram o cadáver por mais de um mês. Só agora decidiram entregá-lo à Cruz Vermelha, para que a família possa velar os restos mortais e dar um funeral condigno.
A família e amigos de Quattrocchi deviam ser poupados a este cortejo grotesco de vaidades políticas, com os políticos de direita e esquerda a tentarem tirar partido (cada qual à sua maneira) da morte de uma pessoa. Num momento tão trágico, em que uma vida foi ceifada, não faz sentido senão respeitar o luto da família. Expor esse luto ao voyeurismo nacional, com o desfile inadmissível de declarações e contra-declarações, é o pior atentado que se pode cometer à memória de uma pessoa que já partiu do mundo dos vivos. O recato da família exigia por parte dos políticos mais contenção, mais pudor.
Em segundo lugar, a retórica utilizada pelas franjas à direita, que querem capitalizar em seu favor a transformação de Quattrocchi num herói nacional. Quem me conhece sabe da repulsa que as esquerdas me provocam, tanto pela ideologia em que se inspiram como pela acção que domina a sua agenda. Mas se não me revejo nas esquerdas, não estou, por exclusão de partes, situado à direita. Este episódio é a melhor prova de como a retórica utilizada pelas direitas me causa uma repugnância idêntica à que destilo em relação às esquerdas.
O aproveitamento demagógico que as direitas italianas estão a fazer do funeral de Quattrocchi é lamentável. O pretexto é o acto de heroísmo que foi interpretado como um chamamento ao patriotismo dos italianos. Um valor que costuma ser apregoado pelos sectores mais à direita, com as consequências bem conhecidas: superação do “eu” pelos valores do grupo (nação), sem grande diferença em relação ao colectivismo que marcou décadas de totalitarismo comunista, também ele baseado na subordinação do indivíduo perante o colectivo. Não é nesta direita que me revejo.
Terceiro, constatar que actos de heroísmo são uma estupidez desnecessária. Comportamentos que são a ocultação do indivíduo que se encerra em cada um de nós, para valorizar o todo onde nos inserimos, são uma perfeita inutilidade. O que ganhou Quattrocchi com aquela declaração, segundos antes de ser assassinado? Um estatuto de herói para a posteridade? Por quanto tempo dura esta posteridade? Daqui a um ano alguém se lembra do acto de coragem protagonizado por este italiano? Esta coragem poupou-lhe a morte?
24.5.04
Conto de fadas, versão século XXI
O último sábado foi passado num longo bocejo enjoativo, com o denominado “casamento real” em Madrid. O princepezinho sem sal, depois de muitas tentativas para encontrar a princesa perfeita, lá acabou por esposar a sua diva vinda da plebe. O espectáculo foi montado à velha maneira, com cerimónias de encantar, lantejoulas quanto baste, vestidos reais que enriquecem costureiros famosos, eles com trajes que só usam nestas ocasiões, para assim frisar a diferença entre os membros da realeza e o comum dos mortais.
Muito se perorou sobre o evento, em particular sobre o simbolismo de certas novidades nele contidas. As análises que ajuízam o casamento do herdeiro do trono espanhol como um ponto de viragem na monarquia trazem até a mim um sorriso de escárnio. No cerne desta opinião está a consorte escolhida. Não apenas por ser plebeia, mas sobretudo por furar as herméticas convenções nobiliárquicas ao ser divorciada. Tenta-se fazer crer que a monarquia espanhola está a dar o seu testemunho de abertura à sociedade civil. Como se este evento fosse uma perestroika monárquica, em que certos tabus mais queridos aos sectores conservadores que cirandam em redor da nobreza começam a ruir pela base, finalmente despertando para o anacronismo que eles representam.
Ouço e leio estas opiniões, mas não fico convencido. Porque todo o cerimonial de abastança, todo o ritual tributário dos costumes idos, toda a carga simbólica de um casamento real festejado com pompa e circunstância – tudo isto permanece bem vivo. Não vou dizer que a culpa seja apenas da instituição monárquica. Muita desta bajulação é alimentada pela própria população, pelos “súbditos” que insistem em deificar a monarquia como um emblema de homens de uma gesta superior que têm o dom para unir um país em torno de laços identitários comuns.
É o povo, uma larga fatia do povo (pelo menos em Espanha), que entrega os sinais de pertença nas mãos dos monarcas. É a gente comum que, inebriada pelo perfume da monarquia, presta uma vassalagem não muito diferente da que era prestada aos reis e príncipes em tempos distantes. Reconhecendo que há uma diferença a reter – hoje os monarcas não são os iluminados, braços divinos na representação terrena – os códigos de identificação que unem os “súbditos” aos monarcas continuam a perfilhar toda a lógica de antanho.
Aliás, o próprio termo “súbdito” é revelador da relação de suserania que se estabelece entre a plebe e os monarcas. Não se fala de uma condição de cidadania, mas de uma relação entre súbdito e monarca. Um sinal reiterado da essência humana, que gosta de procurar algures uma entidade que se aparenta aos poderes divinos celebrados na dimensão religiosa. A necessidade de entregar o destino individual nas mãos de outrem – deus ou rei – leva-me a concluir que as monarquias permanecem o sinal evidente da deificação que, nos dias que correm, não é imposta pelos monarcas mas antes cultivada de baixo para cima, dos súbditos em relação aos suseranos.
Os casamentos reais espelham a feira de vaidades e o mercado de sonhos que preenchem o quotidiano. Vaidades que ilustram o faz-de-conta que inunda os estratos cintilantes da sociedade (o famoso jet set). Sonhos, porque muitas candidatas a princesas (em sonhos) aproveitam os casamentos reais para, num assomo de imaginação delirante, se colocarem no lugar da eleita que arrebatou o coração do príncipe. Anteontem, com a descida dos céus protagonizada pela monarquia espanhola ao abrir as portas a uma plebeia divorciada, este sonho terá ficado mais próximo da realidade do que nunca…
Muito se perorou sobre o evento, em particular sobre o simbolismo de certas novidades nele contidas. As análises que ajuízam o casamento do herdeiro do trono espanhol como um ponto de viragem na monarquia trazem até a mim um sorriso de escárnio. No cerne desta opinião está a consorte escolhida. Não apenas por ser plebeia, mas sobretudo por furar as herméticas convenções nobiliárquicas ao ser divorciada. Tenta-se fazer crer que a monarquia espanhola está a dar o seu testemunho de abertura à sociedade civil. Como se este evento fosse uma perestroika monárquica, em que certos tabus mais queridos aos sectores conservadores que cirandam em redor da nobreza começam a ruir pela base, finalmente despertando para o anacronismo que eles representam.
Ouço e leio estas opiniões, mas não fico convencido. Porque todo o cerimonial de abastança, todo o ritual tributário dos costumes idos, toda a carga simbólica de um casamento real festejado com pompa e circunstância – tudo isto permanece bem vivo. Não vou dizer que a culpa seja apenas da instituição monárquica. Muita desta bajulação é alimentada pela própria população, pelos “súbditos” que insistem em deificar a monarquia como um emblema de homens de uma gesta superior que têm o dom para unir um país em torno de laços identitários comuns.
É o povo, uma larga fatia do povo (pelo menos em Espanha), que entrega os sinais de pertença nas mãos dos monarcas. É a gente comum que, inebriada pelo perfume da monarquia, presta uma vassalagem não muito diferente da que era prestada aos reis e príncipes em tempos distantes. Reconhecendo que há uma diferença a reter – hoje os monarcas não são os iluminados, braços divinos na representação terrena – os códigos de identificação que unem os “súbditos” aos monarcas continuam a perfilhar toda a lógica de antanho.
Aliás, o próprio termo “súbdito” é revelador da relação de suserania que se estabelece entre a plebe e os monarcas. Não se fala de uma condição de cidadania, mas de uma relação entre súbdito e monarca. Um sinal reiterado da essência humana, que gosta de procurar algures uma entidade que se aparenta aos poderes divinos celebrados na dimensão religiosa. A necessidade de entregar o destino individual nas mãos de outrem – deus ou rei – leva-me a concluir que as monarquias permanecem o sinal evidente da deificação que, nos dias que correm, não é imposta pelos monarcas mas antes cultivada de baixo para cima, dos súbditos em relação aos suseranos.
Os casamentos reais espelham a feira de vaidades e o mercado de sonhos que preenchem o quotidiano. Vaidades que ilustram o faz-de-conta que inunda os estratos cintilantes da sociedade (o famoso jet set). Sonhos, porque muitas candidatas a princesas (em sonhos) aproveitam os casamentos reais para, num assomo de imaginação delirante, se colocarem no lugar da eleita que arrebatou o coração do príncipe. Anteontem, com a descida dos céus protagonizada pela monarquia espanhola ao abrir as portas a uma plebeia divorciada, este sonho terá ficado mais próximo da realidade do que nunca…
21.5.04
A culpa do aumento do preço dos combustíveis é da liberalização do mercado?
Muitas acusações têm sido feitas à liberalização do mercado dos combustíveis pelo clima de alta de preços a que temos assistido nos últimos quatro meses. É sintomático do sentir nacional e dos preconceitos a que certos sectores teimam em estar agarrados.
Por um lado, é o testemunho vivo de como o empresário ainda está preso à mentalidade salazarista que defendia a necessidade do Estado proteger determinados sectores económicos. A larga maioria dos empresários nacionais, independentemente da sua dimensão, persiste no erro. Continuam a insistir na protecção do Estado, qual entidade proto-divina que, num assomo paternalista, tem que descair a mãozinha protectora sempre que o jogo concorrencial não é favorável. Já estamos habituados às lamúrias e queixumes, num jogo perverso que é a negação do funcionamento do mercado – em bom rigor, só se defende o mercado quando o seu funcionamento garante vantagens; caso contrário apela-se à intervenção divina do Estado.
Por outro lado, o habitual relambório de críticas, vindas das esquerdas domésticas, contra tudo o que suponha menos Estado e mais mercado. Quando ecoa a palavra “liberalização” vem logo à superfície a demonização da palavra. É curioso como as esquerdas que revelam alergia à liberalização têm tanto em comum como os empresários, mesmo com os grandes grupos empresariais que tantos engulhos causam e fermentam grande parte da sua frenética actividade política. Uns e outros manifestam reservas à liberalização, preferindo um papel mais activo do Estado. É certo que estão unidos nesta linha de acção por motivos diferentes. Uns – os empresários – por mero oportunismo que prejudica a sua credibilidade junto da sociedade. Outros – os políticos das esquerdas – por saberem que quanto mais mercado existir menos espaço há para o seu protagonismo, menor será a dimensão do mercado político que tantos empregos garante às clientelas que gravitam em redor destes quadrantes.
Vem isto a propósito da tendência altista dos preços dos combustíveis. A imagem difundida foi a da culpa da liberalização do mercado da revenda de combustíveis. Porque agora o Estado não controla os preços dos combustíveis, as empresas petrolíferas encontram-se à vontade para congeminar acordos secretos que servem para engordar os já avultados proveitos. Sacrificando o consumidor, que se vê coagido a pagar preços mais elevados. Sem reverter em favor das empresas que revendem gasolina e gasóleo, pois as suas margens de lucro são muito apertadas e não têm poder negocial quando é chegado o momento de determinar o preço de venda dos combustíveis.
Temos que agradecer que haja personagens políticas do calibre de António José Seguro. Anteontem, no parlamento, sugeriu que o governo alterasse o imposto sobre os produtos petrolíferos para servir de almofada à galopante alta de preços. Temos que agradecer ao “To Zé”, ao querido “To Zé”, essa figura ímpar, a síntese do que de pior existe na política doméstica. Primeiro, porque com as suas palavras veio confessar que a culpa da alta dos preços não se deve à liberalização do mercado. Imagino certas esquerdas a contorcerem-se com dores de barriga ao ouvirem as “doutas palavras” do sempre jovem deputado do PS…Segundo, porque a proposta do “To Zé” é apenas mais do mesmo: repetir a receita de Guterres, para assim piorar a situação orçamental do país, para apenas mascarar uma situação que tem as suas origens num fenómeno que não conseguimos controlar – a continuada subida do preço do petróleo no mercado internacional.
É o mercado, não os políticos, que reinam neste domínio. Sem que isso signifique que as culpas são imputadas ao mercado nacional liberalizado. Ele limita-se a seguir as pisadas do mercado internacional. No meio da tormenta, ainda temos a sorte do dólar estar fraco. Caso contrário, seria o descalabro.
Por um lado, é o testemunho vivo de como o empresário ainda está preso à mentalidade salazarista que defendia a necessidade do Estado proteger determinados sectores económicos. A larga maioria dos empresários nacionais, independentemente da sua dimensão, persiste no erro. Continuam a insistir na protecção do Estado, qual entidade proto-divina que, num assomo paternalista, tem que descair a mãozinha protectora sempre que o jogo concorrencial não é favorável. Já estamos habituados às lamúrias e queixumes, num jogo perverso que é a negação do funcionamento do mercado – em bom rigor, só se defende o mercado quando o seu funcionamento garante vantagens; caso contrário apela-se à intervenção divina do Estado.
Por outro lado, o habitual relambório de críticas, vindas das esquerdas domésticas, contra tudo o que suponha menos Estado e mais mercado. Quando ecoa a palavra “liberalização” vem logo à superfície a demonização da palavra. É curioso como as esquerdas que revelam alergia à liberalização têm tanto em comum como os empresários, mesmo com os grandes grupos empresariais que tantos engulhos causam e fermentam grande parte da sua frenética actividade política. Uns e outros manifestam reservas à liberalização, preferindo um papel mais activo do Estado. É certo que estão unidos nesta linha de acção por motivos diferentes. Uns – os empresários – por mero oportunismo que prejudica a sua credibilidade junto da sociedade. Outros – os políticos das esquerdas – por saberem que quanto mais mercado existir menos espaço há para o seu protagonismo, menor será a dimensão do mercado político que tantos empregos garante às clientelas que gravitam em redor destes quadrantes.
Vem isto a propósito da tendência altista dos preços dos combustíveis. A imagem difundida foi a da culpa da liberalização do mercado da revenda de combustíveis. Porque agora o Estado não controla os preços dos combustíveis, as empresas petrolíferas encontram-se à vontade para congeminar acordos secretos que servem para engordar os já avultados proveitos. Sacrificando o consumidor, que se vê coagido a pagar preços mais elevados. Sem reverter em favor das empresas que revendem gasolina e gasóleo, pois as suas margens de lucro são muito apertadas e não têm poder negocial quando é chegado o momento de determinar o preço de venda dos combustíveis.
Temos que agradecer que haja personagens políticas do calibre de António José Seguro. Anteontem, no parlamento, sugeriu que o governo alterasse o imposto sobre os produtos petrolíferos para servir de almofada à galopante alta de preços. Temos que agradecer ao “To Zé”, ao querido “To Zé”, essa figura ímpar, a síntese do que de pior existe na política doméstica. Primeiro, porque com as suas palavras veio confessar que a culpa da alta dos preços não se deve à liberalização do mercado. Imagino certas esquerdas a contorcerem-se com dores de barriga ao ouvirem as “doutas palavras” do sempre jovem deputado do PS…Segundo, porque a proposta do “To Zé” é apenas mais do mesmo: repetir a receita de Guterres, para assim piorar a situação orçamental do país, para apenas mascarar uma situação que tem as suas origens num fenómeno que não conseguimos controlar – a continuada subida do preço do petróleo no mercado internacional.
É o mercado, não os políticos, que reinam neste domínio. Sem que isso signifique que as culpas são imputadas ao mercado nacional liberalizado. Ele limita-se a seguir as pisadas do mercado internacional. No meio da tormenta, ainda temos a sorte do dólar estar fraco. Caso contrário, seria o descalabro.
20.5.04
Um golpe na auto-estima…
Tinha acabado as aulas. Saía da universidade em direcção a casa. Ao dobrar a esquina que dá acesso à rua, vi à porta uma rapariga, por sinal interessante, que carregava um cesto de generosas dimensões. À medida que entravam e saíam alunos, ela entregava uma pequena embalagem azul com uns dizeres debruados a cor-de-rosa. Quando me acercava da saída cruzei-me com um dos felizardos que tinha sido contemplado com a oferta. Vi então que se tratava de preservativos.
Fui-me abeirando da simpática menina. Pensei com os meus botões: também vou ser agraciado com uma caixinha de preservativos. Não que seja daqueles desalmados que aceitam com sofreguidão as ofertas de campanhas publicitarias. Confesso que não tenho essa avidez de meter ao saco o que quer que seja só porque é oferecido. Quando, em supermercados, sou confrontado com estas campanhas, muitas delas servindo-se de meninas deveras simpáticas, passo ao lado e recuso o que me é gentilmente oferecido. Mas ontem, não sei bem porquê, estava disposto a aceitar o que estava à espera de me ser oferecido.
Ensaiei um sorriso, antecipando o agradecimento pela caixinha azul e cor-de-rosa que tinha a certeza que dentro de segundos ia parar às minhas mãos. Desenganei-me. A menina olhou para mim e, com desdém, ficou hirta. A sua mão permaneceu dentro do cesto, imóvel, não retirando a caixinha que eu esperava como oferta. Aquele gesto altivo derrubou a simpatia que em breves segundos a menina tinha demonstrado.
Pior do que isso, a recusa deixou-me devastado. À saída da universidade fui andando, acabrunhado, tentando arranjar explicações para a minha desdita. Interroguei-me porque teria sido recusada a oferta, sobretudo quando pude observar que todas as pessoas (de ambos os sexos) que tinham entrado e saído da universidade antes de mim tinham sido bafejadas pela sorte e pela simpatia da menina. E porque não também eu?
As hipóteses começaram a desfilar mentalmente. Quis começar por ser simpático comigo mesmo, para tentar arrebatar a auto-estima que por momentos tinha ficado ferida. Como ia de fato e gravata, suspeitei que a menina tivesse recusado a caixa de preservativos por esta campanha publicitária estar direccionada para a população estudantil. Paguei os custos de envergar o formalismo que anda comigo durante a semana. Mas pensei em injustiça: outros colegas meus, até mais velhos, preferem a informalidade que os não distingue dos alunos a não ser pela diferente faixa etária. Seriam eles contemplados pela oferta, ou a sua idade também os colocava à margem, como me aconteceu?
Discerni uma segunda hipótese, menos simpática. A menina, ao olhar-me de cima a baixo por uns céleres segundos, terá recusado oferecer-me a caixinha ao reparar que o meu anelar esquerdo transposta uma aliança. Descartei esta hipótese, porque nos tempos que correm o estado civil não é o critério determinante para ajuizar da utilização do que ela estava a oferecer. As nuvens negras adensavam-se na minha cabeça, sobretudo quando outra hipótese foi aventada. Teria a recusa sido motivada pelo meu pretenso ar assexuado? Fiquei alarmado com esta hipótese. A auto-estima estava a tocar no fundo. Não demorei muito a rejeitar esta hipótese, porque as evidências são a prova da sua improbabilidade.
Restava uma hipótese: aqueles preservativos eram oferecidos apenas aos mais jovens. Não fiquei menos sossegado ao reconhecer que esta é a melhor explicação para ter saído da universidade com a mão estendida, com uma mão cheia de nada e outra da mesma coisa.
Fui-me abeirando da simpática menina. Pensei com os meus botões: também vou ser agraciado com uma caixinha de preservativos. Não que seja daqueles desalmados que aceitam com sofreguidão as ofertas de campanhas publicitarias. Confesso que não tenho essa avidez de meter ao saco o que quer que seja só porque é oferecido. Quando, em supermercados, sou confrontado com estas campanhas, muitas delas servindo-se de meninas deveras simpáticas, passo ao lado e recuso o que me é gentilmente oferecido. Mas ontem, não sei bem porquê, estava disposto a aceitar o que estava à espera de me ser oferecido.
Ensaiei um sorriso, antecipando o agradecimento pela caixinha azul e cor-de-rosa que tinha a certeza que dentro de segundos ia parar às minhas mãos. Desenganei-me. A menina olhou para mim e, com desdém, ficou hirta. A sua mão permaneceu dentro do cesto, imóvel, não retirando a caixinha que eu esperava como oferta. Aquele gesto altivo derrubou a simpatia que em breves segundos a menina tinha demonstrado.
Pior do que isso, a recusa deixou-me devastado. À saída da universidade fui andando, acabrunhado, tentando arranjar explicações para a minha desdita. Interroguei-me porque teria sido recusada a oferta, sobretudo quando pude observar que todas as pessoas (de ambos os sexos) que tinham entrado e saído da universidade antes de mim tinham sido bafejadas pela sorte e pela simpatia da menina. E porque não também eu?
As hipóteses começaram a desfilar mentalmente. Quis começar por ser simpático comigo mesmo, para tentar arrebatar a auto-estima que por momentos tinha ficado ferida. Como ia de fato e gravata, suspeitei que a menina tivesse recusado a caixa de preservativos por esta campanha publicitária estar direccionada para a população estudantil. Paguei os custos de envergar o formalismo que anda comigo durante a semana. Mas pensei em injustiça: outros colegas meus, até mais velhos, preferem a informalidade que os não distingue dos alunos a não ser pela diferente faixa etária. Seriam eles contemplados pela oferta, ou a sua idade também os colocava à margem, como me aconteceu?
Discerni uma segunda hipótese, menos simpática. A menina, ao olhar-me de cima a baixo por uns céleres segundos, terá recusado oferecer-me a caixinha ao reparar que o meu anelar esquerdo transposta uma aliança. Descartei esta hipótese, porque nos tempos que correm o estado civil não é o critério determinante para ajuizar da utilização do que ela estava a oferecer. As nuvens negras adensavam-se na minha cabeça, sobretudo quando outra hipótese foi aventada. Teria a recusa sido motivada pelo meu pretenso ar assexuado? Fiquei alarmado com esta hipótese. A auto-estima estava a tocar no fundo. Não demorei muito a rejeitar esta hipótese, porque as evidências são a prova da sua improbabilidade.
Restava uma hipótese: aqueles preservativos eram oferecidos apenas aos mais jovens. Não fiquei menos sossegado ao reconhecer que esta é a melhor explicação para ter saído da universidade com a mão estendida, com uma mão cheia de nada e outra da mesma coisa.
19.5.04
Sobre a semi-privatização das águas
De surpresa, o governo anunciou a privatização de 49% da empresa Águas de Portugal (ADP). Como seria de esperar, logo de seguida ergueu-se um coro de protestos entre as várias esquerdas. Se a contestação dos comunistas e da esquerda radical não é novidade (para esta gente, o tempo das nacionalizações é recordado com saudade, como se no mundo em que vivemos essa figura não seja um anacronismo sem sentido), já a reacção dos socialistas merece alguns reparos.
Primeiro o coordenador para a área económica (Hasse Ferreira), e depois o incomparável secretário-geral deste partido, exibiram a sua oposição. Ferro Rodrigues distinguiu-se, mais uma vez, pelo chorrilho de disparates que o caracterizam. Asseverou que a água é um bem público e que os socialistas cá do burgo são contra a privatização da água porque, como bem público, tem que haver garantias que chega às casas de todos os cidadãos. E, adivinha-se como remate do seu brilhante raciocínio, só o Estado pode garantir este resultado.
Afirmar que a água é um bem público é a primeira falácia. Porque razão não pode o fornecimento de água ser privatizado? Será que Ferro Rodrigues não conhece outros países, mais desenvolvidos do que nós, onde o abastecimento de água é feito por empresas privadas? Com a diferença de que se trata de um serviço de melhor qualidade e com preços mais competitivos dos que os oferecidos pelos monopólios estatais. A evidência está um pouco por todo o mundo desenvolvido. Compreende-se que para o PS seja tacticamente aconselhável insurgir-se contra o que o governo vai fazendo – quanto mais não seja para dar a aparência (só a aparência…) de que faz oposição. Inaceitável é passar a ideia de que o país vive num casulo e pode evitar as experiências positivas que vêm do exterior.
Por outro lado, não há razão para o temor lançado, suspeitando que os mais desfavorecidos podem passar a viver à míngua de água. Primeiro porque é preciso contar toda a verdade sobre esta iniciativa do governo. Trata-se de uma semi-privatização, com a venda de 49% aos privados. O Estado vai manter-se como accionista maioritário, em condições de controlar o fornecimento de água ao público. As razões para alarme são outra falácia desta intervenção socialista. Como as coisas foram apresentadas, com o manto de dramatismo demagógico com que foram tingidas, até parece que o Estado vai alienar 100% do capital da ADP.
Segundo, mesmo que os privados passassem a ser os únicos responsáveis por este negócio, não se vê como isso pode ser prejudicial para o consumidor. Não há tantos domínios onde outrora o Estado era o monopolista na prestação de bens e serviços e, depois, quando estes sectores foram abertos à iniciativa privada, os consumidores focaram a ganhar? Porque motivo a água escapa a esta tendência?
Aliás este projecto do governo merece críticas, mas por razões diferentes das invocadas pelas esquerdas. É um projecto que se fica pela metade. Abrir o capital da ADP aos privados apenas em 49% permite compreender a intenção do governo: trata-se de mais uma manobra para permitir encaixe orçamental, num tempo conturbado para a gestão da política orçamental.
Continuaremos a ter o Estado a mandar no abastecimento de água. Não houve a coragem para fazer o que devia ser feito: privatizar a empresa na totalidade, para que a água que chega às nossas torneiras seja apenas uma responsabilidade de privados.
Primeiro o coordenador para a área económica (Hasse Ferreira), e depois o incomparável secretário-geral deste partido, exibiram a sua oposição. Ferro Rodrigues distinguiu-se, mais uma vez, pelo chorrilho de disparates que o caracterizam. Asseverou que a água é um bem público e que os socialistas cá do burgo são contra a privatização da água porque, como bem público, tem que haver garantias que chega às casas de todos os cidadãos. E, adivinha-se como remate do seu brilhante raciocínio, só o Estado pode garantir este resultado.
Afirmar que a água é um bem público é a primeira falácia. Porque razão não pode o fornecimento de água ser privatizado? Será que Ferro Rodrigues não conhece outros países, mais desenvolvidos do que nós, onde o abastecimento de água é feito por empresas privadas? Com a diferença de que se trata de um serviço de melhor qualidade e com preços mais competitivos dos que os oferecidos pelos monopólios estatais. A evidência está um pouco por todo o mundo desenvolvido. Compreende-se que para o PS seja tacticamente aconselhável insurgir-se contra o que o governo vai fazendo – quanto mais não seja para dar a aparência (só a aparência…) de que faz oposição. Inaceitável é passar a ideia de que o país vive num casulo e pode evitar as experiências positivas que vêm do exterior.
Por outro lado, não há razão para o temor lançado, suspeitando que os mais desfavorecidos podem passar a viver à míngua de água. Primeiro porque é preciso contar toda a verdade sobre esta iniciativa do governo. Trata-se de uma semi-privatização, com a venda de 49% aos privados. O Estado vai manter-se como accionista maioritário, em condições de controlar o fornecimento de água ao público. As razões para alarme são outra falácia desta intervenção socialista. Como as coisas foram apresentadas, com o manto de dramatismo demagógico com que foram tingidas, até parece que o Estado vai alienar 100% do capital da ADP.
Segundo, mesmo que os privados passassem a ser os únicos responsáveis por este negócio, não se vê como isso pode ser prejudicial para o consumidor. Não há tantos domínios onde outrora o Estado era o monopolista na prestação de bens e serviços e, depois, quando estes sectores foram abertos à iniciativa privada, os consumidores focaram a ganhar? Porque motivo a água escapa a esta tendência?
Aliás este projecto do governo merece críticas, mas por razões diferentes das invocadas pelas esquerdas. É um projecto que se fica pela metade. Abrir o capital da ADP aos privados apenas em 49% permite compreender a intenção do governo: trata-se de mais uma manobra para permitir encaixe orçamental, num tempo conturbado para a gestão da política orçamental.
Continuaremos a ter o Estado a mandar no abastecimento de água. Não houve a coragem para fazer o que devia ser feito: privatizar a empresa na totalidade, para que a água que chega às nossas torneiras seja apenas uma responsabilidade de privados.
18.5.04
Memórias de Berlim
Foi a segunda vez que estive em Berlim. Em ambas as vezes não tive a sorte de apanhar a cidade com bom tempo. Da primeira, estávamos em Janeiro, e Berlim apareceu-me coberta de neve. Como admiro o espectáculo proporcionado pela neve, o meu primeiro contacto com Berlim teve o fascínio do manto branco que cobria a cidade. Mas ao mesmo tempo foram dias sombrios pela atmosfera densa que pairava, com uma névoa congelante que tornava o dia carente de luminosidade.
Agora, em plena Primavera, o Inverno tinha outro encontro marcado comigo na Berlim revisitada. Uma chuva persistente, um vento que abanava as árvores e trazia uma sensação de desconforto, os pés molhados ao fim de alguns minutos de aventura pelas ruas de Berlim expostas a esta chuva inclemente.
Finalmente a chuva tinha deixado de cair. Saí à rua para um breve contacto com a cidade. Como o tempo escasseava, lembrei-me dos locais mais emblemáticos de Berlim e esbocei um trajecto que me levasse pela grandiosidade espartana da cidade. Devo dizer que Berlim fica aquém de Londres, Paris ou Roma quando as grandes metrópoles europeias são comparadas nas minhas preferências. Berlim tem, no entanto, um fascínio próprio, um simbolismo que está ausente nas outras cidades que mencionei. É uma cidade que aproveita a planura do terreno para se espraiar em avenidas extensas, que se perdem de vista.
Os edifícios da avenida mais conhecida (Unter der Linden) são sumptuosos, exalando a grandeza da Prússia imperial. É uma sucessão de edifícios majestosos, que se vai relevando aos olhos de quem percorre a pé a avenida. A estranheza assalta-me porque estes edifícios (e as igrejas) estão na parte que foi ocupada pela antiga República Democrática Alemã. Conhecida a tendência para reescrever a história por parte dos regimes comunistas, com a queda natural para eliminar os vestígios que representassem um passado repugnado pela doutrina oficial, é surpreendente que não tenha havido a tentação para deitar abaixo estes imponentes e monumentais edifícios e, em seu lugar, plantar outros, impessoais, esteticamente anódinos, bem ao gosto da tipologia comunista.
À medida que a Unter der Linden se aproxima do seu final, a porta de Brandenburgo vai crescendo no horizonte. O local em si é magnífico, na esteira de toda a imponência que a Prússia queria imprimir à sua existência imperial. Mas o local ganhou outro significado no século XX, por ter sido aqui que a derrocada do detestável muro de Berlim teve o seu ponto de ebulição. Foi aqui, na porta de Brandenburgo, que as pessoas do leste e do ocidente começaram a conviver depois de ultrapassada a barreira de um muro decadente. De um muro que era o sinal vivo da decadência de uma ideologia que tantas liberdades individuais cerceou, que tantas vidas ceifou quando essas pessoas procuravam escapar para o outro lado em busca da liberdade negada pela Alemanha de leste.
A porta de Brandenburgo tem este incomensurável valor simbólico. Sabe bem parar diante dela, imaginar as sensações inebriantes vividas pelas pessoas que testemunharam no local os acontecimentos tonificantes que haveriam de levar à desagregação do muro, sentir como esses momentos foram tão importantes para virar uma página negra (mais uma) da história da humanidade. O ar que se respira na porta de Brandenburgo é revigorante, um tributo à libertação de amarras que por tantos anos manietaram a liberdade individual em nome de asquerosos princípios totalitários.
Em Berlim respira-se o aroma da liberdade.
Agora, em plena Primavera, o Inverno tinha outro encontro marcado comigo na Berlim revisitada. Uma chuva persistente, um vento que abanava as árvores e trazia uma sensação de desconforto, os pés molhados ao fim de alguns minutos de aventura pelas ruas de Berlim expostas a esta chuva inclemente.
Finalmente a chuva tinha deixado de cair. Saí à rua para um breve contacto com a cidade. Como o tempo escasseava, lembrei-me dos locais mais emblemáticos de Berlim e esbocei um trajecto que me levasse pela grandiosidade espartana da cidade. Devo dizer que Berlim fica aquém de Londres, Paris ou Roma quando as grandes metrópoles europeias são comparadas nas minhas preferências. Berlim tem, no entanto, um fascínio próprio, um simbolismo que está ausente nas outras cidades que mencionei. É uma cidade que aproveita a planura do terreno para se espraiar em avenidas extensas, que se perdem de vista.
Os edifícios da avenida mais conhecida (Unter der Linden) são sumptuosos, exalando a grandeza da Prússia imperial. É uma sucessão de edifícios majestosos, que se vai relevando aos olhos de quem percorre a pé a avenida. A estranheza assalta-me porque estes edifícios (e as igrejas) estão na parte que foi ocupada pela antiga República Democrática Alemã. Conhecida a tendência para reescrever a história por parte dos regimes comunistas, com a queda natural para eliminar os vestígios que representassem um passado repugnado pela doutrina oficial, é surpreendente que não tenha havido a tentação para deitar abaixo estes imponentes e monumentais edifícios e, em seu lugar, plantar outros, impessoais, esteticamente anódinos, bem ao gosto da tipologia comunista.
À medida que a Unter der Linden se aproxima do seu final, a porta de Brandenburgo vai crescendo no horizonte. O local em si é magnífico, na esteira de toda a imponência que a Prússia queria imprimir à sua existência imperial. Mas o local ganhou outro significado no século XX, por ter sido aqui que a derrocada do detestável muro de Berlim teve o seu ponto de ebulição. Foi aqui, na porta de Brandenburgo, que as pessoas do leste e do ocidente começaram a conviver depois de ultrapassada a barreira de um muro decadente. De um muro que era o sinal vivo da decadência de uma ideologia que tantas liberdades individuais cerceou, que tantas vidas ceifou quando essas pessoas procuravam escapar para o outro lado em busca da liberdade negada pela Alemanha de leste.
A porta de Brandenburgo tem este incomensurável valor simbólico. Sabe bem parar diante dela, imaginar as sensações inebriantes vividas pelas pessoas que testemunharam no local os acontecimentos tonificantes que haveriam de levar à desagregação do muro, sentir como esses momentos foram tão importantes para virar uma página negra (mais uma) da história da humanidade. O ar que se respira na porta de Brandenburgo é revigorante, um tributo à libertação de amarras que por tantos anos manietaram a liberdade individual em nome de asquerosos princípios totalitários.
Em Berlim respira-se o aroma da liberdade.
17.5.04
Circo ou folclore?
Acontece invariavelmente quando vou ao estrangeiro e regresso a casa. Depois de uns dias longe de casa, da família e dos amigos, e da gastronomia portuguesa que é sempre recordada quando ando por outras paragens, começo a sentir a falta do ambiente a que estou acostumado. Claro que estas viagens têm as suas recompensas. Continuo a pensar que conhecer outras terras, outras gentes, outras mentalidades, outras culturas, é a melhor maneira de continuar um processo de crescimento interior que não cessa. E também não é menos óbvio que para quem é tão céptico em relação ao país onde nasceu (é o meu caso), estes dias passados no estrangeiro funcionam como um necessário oxigenar que dá alento para mais um período encafuado entre portas.
O problema é o amplexo de sensações contrastantes quando, já no aeroporto, me acerco da porta de embarque do último voo – o que tem como destino o Porto natal. Sinto-me envolvido por um paradoxo de sensações. Por um lado, sei que vou regressar para junto de quem me é querido (esses é que são o meu verdadeiro país). Por outro lado, sinto uma antecipação do país que deixei dias antes, apesar de ainda estar fisicamente distante de Portugal.
Entrar numa sala de embarque com destino ao Porto é um laboratório em ponto pequeno do país. Sente-se a atmosfera do Portugal profundo, e digo-o não porque se ouça falar português como língua dominante, quando até a uns minutos antes era uma língua ausente no país estrangeiro. O arraial aparece, quase sempre, diante dos meus olhos, seja em Londres ou em Paris. Os bigodes farfalhudos, as mulheres que falam sem canseira, os tiques dos aspirantes ao jet set nacional, de tudo um pouco.
Mulheres sexagenárias, marcadas por uma vida de sofrido trabalho, que metem conversa na sala de embarque e que ao fim de meia dúzia de minutos falam com o desembaraço e com a familiaridade de quem já se conhece desde tenra idade. Trocando confissões que acabam por ser partilhadas por quem, involuntariamente, está mesmo ali ao lado. Homens de negócios que falam entre si, não dos negócios que os levam a viajar, mas das experiências bizarras de viagens passadas, como se fossem os heróis contemporâneos de uma nova gesta de viandantes sucessora dos descobridores de tempos idos.
Um avião de regresso a Portugal nunca é um bom local para ler em paz, ou para por trabalho em dia. Um avião que regressa a Portugal é sempre uma tenda montada com um arraial tão ao gosto da populaça. Só falta correr o garrafão de cinco litros e a música pimba que alegra os espíritos. De resto já há de tudo, sobretudo um ruído incessante que vem das conversas de ocasião que ajudam a passar o tempo da viagem. Depois, ao aterrar, quantas vezes se aplaude a destreza do comandante que conseguiu, “graças a deus”, por o grande pássaro no chão sem problemas?
Ontem, mais uma vez de regresso ao Porto, passei por todas estas sensações. Agravadas pela auto-estima nacional cultivada à força a propósito do campeonato europeu de futebol e das façanhas desportivas do clube de futebol local. Até um comissário de bordo da Air France, de raízes portuguesas (a avaliar pelo sotaque arrevesado com que tentava falar português), ajudou à festa nas despedidas finais com um vitorioso “viva Portugal, viva o Porto”. Faltou pouco para o avião ir abaixo, tal o entusiasmo transbordante que replicou ao mote. Ao meu lado, alguém abanava a cabeça e sentenciava: “tenho a certeza que daqui a duas gerações já não seremos assim”.
Eu não sou tão optimista.
O problema é o amplexo de sensações contrastantes quando, já no aeroporto, me acerco da porta de embarque do último voo – o que tem como destino o Porto natal. Sinto-me envolvido por um paradoxo de sensações. Por um lado, sei que vou regressar para junto de quem me é querido (esses é que são o meu verdadeiro país). Por outro lado, sinto uma antecipação do país que deixei dias antes, apesar de ainda estar fisicamente distante de Portugal.
Entrar numa sala de embarque com destino ao Porto é um laboratório em ponto pequeno do país. Sente-se a atmosfera do Portugal profundo, e digo-o não porque se ouça falar português como língua dominante, quando até a uns minutos antes era uma língua ausente no país estrangeiro. O arraial aparece, quase sempre, diante dos meus olhos, seja em Londres ou em Paris. Os bigodes farfalhudos, as mulheres que falam sem canseira, os tiques dos aspirantes ao jet set nacional, de tudo um pouco.
Mulheres sexagenárias, marcadas por uma vida de sofrido trabalho, que metem conversa na sala de embarque e que ao fim de meia dúzia de minutos falam com o desembaraço e com a familiaridade de quem já se conhece desde tenra idade. Trocando confissões que acabam por ser partilhadas por quem, involuntariamente, está mesmo ali ao lado. Homens de negócios que falam entre si, não dos negócios que os levam a viajar, mas das experiências bizarras de viagens passadas, como se fossem os heróis contemporâneos de uma nova gesta de viandantes sucessora dos descobridores de tempos idos.
Um avião de regresso a Portugal nunca é um bom local para ler em paz, ou para por trabalho em dia. Um avião que regressa a Portugal é sempre uma tenda montada com um arraial tão ao gosto da populaça. Só falta correr o garrafão de cinco litros e a música pimba que alegra os espíritos. De resto já há de tudo, sobretudo um ruído incessante que vem das conversas de ocasião que ajudam a passar o tempo da viagem. Depois, ao aterrar, quantas vezes se aplaude a destreza do comandante que conseguiu, “graças a deus”, por o grande pássaro no chão sem problemas?
Ontem, mais uma vez de regresso ao Porto, passei por todas estas sensações. Agravadas pela auto-estima nacional cultivada à força a propósito do campeonato europeu de futebol e das façanhas desportivas do clube de futebol local. Até um comissário de bordo da Air France, de raízes portuguesas (a avaliar pelo sotaque arrevesado com que tentava falar português), ajudou à festa nas despedidas finais com um vitorioso “viva Portugal, viva o Porto”. Faltou pouco para o avião ir abaixo, tal o entusiasmo transbordante que replicou ao mote. Ao meu lado, alguém abanava a cabeça e sentenciava: “tenho a certeza que daqui a duas gerações já não seremos assim”.
Eu não sou tão optimista.
16.5.04
A enorme cultura democrática de Lula da Silva
Acabo agora de ouvir a notícia. Não, não foi na TSF. Por um lado, porque no sítio onde me encontro, algures perdido no meio da Europa oriental, as ondas da TSF não conseguem chegar. Por outro lado, porque à TSF não interessa veicular o tipo de notícias que a mais imparcial Euronews costuma transmitir. Eis a notícia: um jornalista do New York Times, destacado no Brasil, escreveu uma peça sobe os alegados abusos alcoólicos de Luís Inácio da Silva, presidente do Brasil e herói das esquerdas órfãs de referências após o decesso da mitologia ideológica que caiu com o muro de Berlim e a derrocada do comunismo, herói de outras esquerdas mais moderadas que não hesitam um segundo em se agarrar a novos ícones que arregimentem fidelidades para a sua causa.
O resultado da ousadia do jornalista foi o que se esperava. Em vez de haver um desmentido da presidência da república brasileira, com olímpico savoir faire, negando as propensões etílicas do grande timoneiro, o que aconteceu foi uma reacção desabrida. Foi dito (e cito de cor a notícia) que o tal jornalista “já não merecia o visto de permanência no Brasil”. Forma atenuada de relatar a expulsão do jornalista. De uma penada só, Lula prometeu levar o caso à justiça, para se ressarcir dos prejuízos morais que o desalmado jornalista lhe causou à sua imagem heroifica.
Não fiquei surpreendido. Quantos são os “grandes democratas”, vangloriados por tantas franjas às esquerdas, que na hora da verdade revelam este desrespeito pelo mais elementar direito à informação, à liberdade de expressão? Do que se conhece de Lula da Silva, do seu passado que remonta aos tempos de um frenético activista sindical vestido de vermelhas cores que se dão mal com os valores da tolerância e do respeito para com as opiniões diferentes, com este cadastro seria espantoso se ele conseguisse encaixar os relatos de alcoolismo.
Aliás, esta reacção excessiva parece corroborar a notícia. De outro modo não faria sentido o presidente brasileiro vir a terreiro revelar-se tão ofendido, ao ponto de empacotar o jornalista para o local de origem e prometer que virá outra vez a território brasileiro para sentar o rabo no banco dos réus para responder pela afronta inadmissível.
Imagina-se o desenlace. Os tribunais brasileiros, apesar de se presumir a independência em relação ao poder político, não terão liberdade de espírito para julgar com imparcialidade esta questão de enorme relevância nacional, diria mesmo mundial. Não se vê como os juízes poderão usar da necessária liberdade de espírito para concluir se, afinal, o jornalista estava a delirar quando escreveu sobre os devaneios etílicos do senhor presidente da república. É um caso que tem a solução que se adivinha. Assim se descobrem os alicerces democráticos deste grande democrata, bem como a confusão de valores que vai na sua cabeça atormentada.
Sim, porque se trata de uma cabeça atormentada. Imerso nas concessões ao tenebroso capitalismo que o têm distinguido desde que tomou posse, exposto à decepção de quem tanta esperança nele depositou, por esse mundo fora, como catalisador da mudança desejada, Lula deve andar martirizado por um conflito de consciência. Entre o que gostaria de fazer (a sua retórica de anos a fio, as promessas eleitorais) e o que está constrangido a fazer (daí as acusações de cedência ao “neo-liberalismo” que timidamente lhe começam a ser dirigidas). Talvez por isso, quem sabe se angustiado com o conflito interior que o mantém dividido entre o que gostaria de fazer e o que está obrigado a fazer, Lula ter-se-á entregado aos prazeres da bebida.
Oups! Esqueçam que escrevi aquela frase. Porque se vou ao Brasil ainda apanho com uma notificação para comparecer em tribunal por ofensas inadmissíveis a sua excelência, o senhor presidente da república federativa do Brasil…Afinal, nos heróis e nos mitos não se toca, porque tudo se lhes perdoa.
O resultado da ousadia do jornalista foi o que se esperava. Em vez de haver um desmentido da presidência da república brasileira, com olímpico savoir faire, negando as propensões etílicas do grande timoneiro, o que aconteceu foi uma reacção desabrida. Foi dito (e cito de cor a notícia) que o tal jornalista “já não merecia o visto de permanência no Brasil”. Forma atenuada de relatar a expulsão do jornalista. De uma penada só, Lula prometeu levar o caso à justiça, para se ressarcir dos prejuízos morais que o desalmado jornalista lhe causou à sua imagem heroifica.
Não fiquei surpreendido. Quantos são os “grandes democratas”, vangloriados por tantas franjas às esquerdas, que na hora da verdade revelam este desrespeito pelo mais elementar direito à informação, à liberdade de expressão? Do que se conhece de Lula da Silva, do seu passado que remonta aos tempos de um frenético activista sindical vestido de vermelhas cores que se dão mal com os valores da tolerância e do respeito para com as opiniões diferentes, com este cadastro seria espantoso se ele conseguisse encaixar os relatos de alcoolismo.
Aliás, esta reacção excessiva parece corroborar a notícia. De outro modo não faria sentido o presidente brasileiro vir a terreiro revelar-se tão ofendido, ao ponto de empacotar o jornalista para o local de origem e prometer que virá outra vez a território brasileiro para sentar o rabo no banco dos réus para responder pela afronta inadmissível.
Imagina-se o desenlace. Os tribunais brasileiros, apesar de se presumir a independência em relação ao poder político, não terão liberdade de espírito para julgar com imparcialidade esta questão de enorme relevância nacional, diria mesmo mundial. Não se vê como os juízes poderão usar da necessária liberdade de espírito para concluir se, afinal, o jornalista estava a delirar quando escreveu sobre os devaneios etílicos do senhor presidente da república. É um caso que tem a solução que se adivinha. Assim se descobrem os alicerces democráticos deste grande democrata, bem como a confusão de valores que vai na sua cabeça atormentada.
Sim, porque se trata de uma cabeça atormentada. Imerso nas concessões ao tenebroso capitalismo que o têm distinguido desde que tomou posse, exposto à decepção de quem tanta esperança nele depositou, por esse mundo fora, como catalisador da mudança desejada, Lula deve andar martirizado por um conflito de consciência. Entre o que gostaria de fazer (a sua retórica de anos a fio, as promessas eleitorais) e o que está constrangido a fazer (daí as acusações de cedência ao “neo-liberalismo” que timidamente lhe começam a ser dirigidas). Talvez por isso, quem sabe se angustiado com o conflito interior que o mantém dividido entre o que gostaria de fazer e o que está obrigado a fazer, Lula ter-se-á entregado aos prazeres da bebida.
Oups! Esqueçam que escrevi aquela frase. Porque se vou ao Brasil ainda apanho com uma notificação para comparecer em tribunal por ofensas inadmissíveis a sua excelência, o senhor presidente da república federativa do Brasil…Afinal, nos heróis e nos mitos não se toca, porque tudo se lhes perdoa.
14.5.04
Retrato de Gorzów (II)
Ao segundo dia da estadia na Polónia, desloquei-me de Gorzów para uma povoação situada a 30 km., Lubniewice. Trata-se de um local com uma paisagem bela, povoada pelo mesmo tipo de arvoredo denso que já tinha visto nos arredores de Gorzów, bordejada por dois lagos que quase cercam esta pequena povoação onde muitos polacos da região têm a sua casa de férias, onde (pela quantidade de placares com a indicação “zimmer”) muitos alemães devem ter o seu repouso veraneante.
O local é feito por medida para o descanso. Este é o testemunho de quem está cativo nesta estância de férias, distante do centro da povoação e da estrada. Neste momento, sentado numa esplanada, só ouço o chilrear de diferentes pássaros numa sinfonia harmoniosa. Nada mais – nem sequer um barulho fugidio dos automóveis que passam ao longe. Nem televisão, nem muito menos Internet, pelo que é o local ideal para estar alheado do mundo.
Ao fim de quatro dias na Polónia, o sol veio fazer-me companhia. Deixei de estar acompanhado por um céu de chumbo que ameaçava a todo o momento desabar em chuva. Esse tempo deprimente foi pousar a outras paragens.
Na curta viagem entre Gorzów e Lubniewice pude apreciar uma paisagem plana, carregada de um verde que é exuberante por ser abundantemente regado pela chuva. O arvoredo tem diferentes espécies, algumas das quais nunca vi (e, portanto, por ausência de conhecimentos botânicos, não estou em condições de identificar). Também aqui o pinheiro é a árvore que domina. Mas não é um pinheiro igual ao que temos em Portugal. É tremendamente alto, trepando pelo céu acima, obrigando o pescoço a dobrar-se bem para trás para alcançar o cume destas árvores. Como também é original a forma como estão podadas. Em vez de estarem preenchidas com a ramagem desde o topo até às proximidades do solo, estes pinheiros parecem finguelinhas escanzelados que apenas têm ramagem na parte mais superior. Os ramos que ousam descer no tronco são cortados. A aparência com que as árvores ficam é desequilibrada: um tronco espetado em altura com uma folhagem assimetricamente distribuída.
Quando cheguei a Lubniewice e me instalei na estância, meti-me à estrada e fiz o trajecto de 15 minutos que me separava da localidade. Não há muito para ver, nem para relatar. Pouca gente na rua, a avenida principal ainda a lembrar a influência soviética (era qualquer coisa que prestava um tributo a Estaline, ao que me pude aperceber, pelo nome compósito da avenida), casas que variam entre o feio e o horrível, manchando a beleza da paisagem que envolve a povoação.
Eis quando dou de caras com a igreja principal. Sabendo que os polacos eram uma excepção ao ateísmo militante imposto pela influência soviética, fiquei curioso para ver o interior da igreja, para comparar a iconografia dos polacos com a tendência dominante das igrejas portuguesas, para retirar conclusões acerca das parecenças e das diferenças entre o catolicismo de ambos os países. Ao entrar na igreja fui ouvindo em surdina os cânticos religiosos de uma missa que estava a decorrer. Não cheguei a entrar na igreja. Preferi ficar no átrio e espreitar para observar o seu interior.
Acabei, contudo, por ver a atenção desviada para outro aspecto. A vista demorou-se nas pessoas que estavam naquele serviço religioso. Estando atrás destas pessoas (não mais que uma vintena, todas mulheres), podia ver vinte cabeças preenchidas por cabelos que oscilavam entre o branco e o acinzentado. Todas as mulheres que presenciavam a missa estavam na faixa etária dos 70 para cima. Interroguei-me: daqui a dez anos, esta missa estará deserta. A menos que haja a renovação destas fiéis por outras, agora mais novas, mas ainda não suficientemente tementes a deus. A crise da fé não é infecta apenas a igreja portuguesa. Pela amostra (que desconheço se é representativa), é também um problema que inunda uma sociedade tão arreigadamente católica como a polaca.
(Em Lubniewice)
O local é feito por medida para o descanso. Este é o testemunho de quem está cativo nesta estância de férias, distante do centro da povoação e da estrada. Neste momento, sentado numa esplanada, só ouço o chilrear de diferentes pássaros numa sinfonia harmoniosa. Nada mais – nem sequer um barulho fugidio dos automóveis que passam ao longe. Nem televisão, nem muito menos Internet, pelo que é o local ideal para estar alheado do mundo.
Ao fim de quatro dias na Polónia, o sol veio fazer-me companhia. Deixei de estar acompanhado por um céu de chumbo que ameaçava a todo o momento desabar em chuva. Esse tempo deprimente foi pousar a outras paragens.
Na curta viagem entre Gorzów e Lubniewice pude apreciar uma paisagem plana, carregada de um verde que é exuberante por ser abundantemente regado pela chuva. O arvoredo tem diferentes espécies, algumas das quais nunca vi (e, portanto, por ausência de conhecimentos botânicos, não estou em condições de identificar). Também aqui o pinheiro é a árvore que domina. Mas não é um pinheiro igual ao que temos em Portugal. É tremendamente alto, trepando pelo céu acima, obrigando o pescoço a dobrar-se bem para trás para alcançar o cume destas árvores. Como também é original a forma como estão podadas. Em vez de estarem preenchidas com a ramagem desde o topo até às proximidades do solo, estes pinheiros parecem finguelinhas escanzelados que apenas têm ramagem na parte mais superior. Os ramos que ousam descer no tronco são cortados. A aparência com que as árvores ficam é desequilibrada: um tronco espetado em altura com uma folhagem assimetricamente distribuída.
Quando cheguei a Lubniewice e me instalei na estância, meti-me à estrada e fiz o trajecto de 15 minutos que me separava da localidade. Não há muito para ver, nem para relatar. Pouca gente na rua, a avenida principal ainda a lembrar a influência soviética (era qualquer coisa que prestava um tributo a Estaline, ao que me pude aperceber, pelo nome compósito da avenida), casas que variam entre o feio e o horrível, manchando a beleza da paisagem que envolve a povoação.
Eis quando dou de caras com a igreja principal. Sabendo que os polacos eram uma excepção ao ateísmo militante imposto pela influência soviética, fiquei curioso para ver o interior da igreja, para comparar a iconografia dos polacos com a tendência dominante das igrejas portuguesas, para retirar conclusões acerca das parecenças e das diferenças entre o catolicismo de ambos os países. Ao entrar na igreja fui ouvindo em surdina os cânticos religiosos de uma missa que estava a decorrer. Não cheguei a entrar na igreja. Preferi ficar no átrio e espreitar para observar o seu interior.
Acabei, contudo, por ver a atenção desviada para outro aspecto. A vista demorou-se nas pessoas que estavam naquele serviço religioso. Estando atrás destas pessoas (não mais que uma vintena, todas mulheres), podia ver vinte cabeças preenchidas por cabelos que oscilavam entre o branco e o acinzentado. Todas as mulheres que presenciavam a missa estavam na faixa etária dos 70 para cima. Interroguei-me: daqui a dez anos, esta missa estará deserta. A menos que haja a renovação destas fiéis por outras, agora mais novas, mas ainda não suficientemente tementes a deus. A crise da fé não é infecta apenas a igreja portuguesa. Pela amostra (que desconheço se é representativa), é também um problema que inunda uma sociedade tão arreigadamente católica como a polaca.
(Em Lubniewice)
13.5.04
Retrato de Gorzów (I)
A viagem entre Berlim e Gorzów, 40 km. depois da fronteira entre a Alemanha e a Polónia, já foi feita de noite. Não pude apreciar a paisagem. Tive a oportunidade de constatar como o comboio que apanhei depois de entrado em território polaco era um sinal vivo de terceiro-mundismo (ou um resquício do comunismo derrotado, o que vai dar no mesmo). Carruagens velhas, um cheiro que sem ser nauseabundo era incomodativo, assentos que pediam meças ao conforto, uma velocidade lenta.
Ao desembarcar na estação de Gorzów estavam duas pessoas à minha espera. Uma professora da universidade e um aluno que, no semestre anterior, tinha estado no Porto ao abrigo de um intercâmbio de estudantes. Em breves minutos, os meus anfitriões desdobraram-se numa preocupação de se desculparem pelo atraso em que esta parte do país está mergulhada. Mal pousei o pé na gare de Gorzów, tive a primeira exibição: o ex-aluno, acabrunhado, lamentou que o meu primeiro contacto com o seu país tenha sido um comboio degradante como aquele em que tinha acabado de viajar. No dia seguinte, outra professora que fez de cicerone pela cidade voltou a tocar no mesmo assunto.
Vi nesta manifestação um sinal de embaraço pelas más condições de transporte oferecidas pela linha férrea que une esta cidade à fronteira com a Alemanha. Como se sentissem a necessidade de uma desculpa pelo desconforto daquela curta viagem. Sentia o temor que aquele era o pior cartão de visita para quem vem da Alemanha e entra na Polónia. Era necessário atenuar o embaraço pela chegada de alguém que vem do “mundo desenvolvido” e pode ficar chocado com o que vê ao entrar num país que, desde há uma dúzia de dias, também é um parceiro da União Europeia.
A segunda manifestação foi vivida logo a seguir, acabava de sair do edifício da estação. Enquanto nos encaminhávamos a pé para o exterior, ao atravessar a rua em direcção ao parque de estacionamento fui avisado pela anfitriã, também com alguma dose de vergonha, que o caro dela era “aquele carro muito velho que ali está”. Ao dizer isto acenou com a cabeça para o lado direito. Dirigi o olhar nessa direcção, onde alcancei dois carros: um pequeno e velho Fiat 500 e um grande Mercedes que devia ter tantos anos quanto eu (mais tarde ela confirmou a minha ideia: o Mercedes tem 30 anos).
As primeiras impressões diurnas da cidade e do entorno natural só as tive no dia seguinte, depois do pequeno-almoço. Quando me foram buscar ao hotel, fizemos um percurso de automóvel pela cidade, para ficar com uma primeira impressão do que podia encontrar. É uma cidade pequena (pelo número de habitantes e pela dimensão que me pude aperceber, será equivalente a Guimarães), localizada junto ao rio Warta. Sem grande beleza arquitectónica porque os soviéticos decidiram deitar abaixo, após a segunda guerra mundial, aquilo que a guerra em si não tinha destruído. Só no centro histórico ficaram alguns vestígios da construção típica de Gorzów – uns quantos edifícios de tijolo, com ornamentos a encimá-los. De resto, um marasmo total, com blocos indiferenciados, frios, impessoais, onde se acantonavam as massas acríticas que um regime asfixiante gostava de alojar.
A beleza paisagística que circunda a cidade compensa o diagnóstico. O verde invade a cidade a todo o momento, com inúmeros parques que se desdobram à medida que as ruas se sucedem. Um verde brilhante preenche a paisagem, com diversas espécies de árvores num arvoredo denso, tão denso que em certas zonas o sol não consegue penetrar entre a espessura das ramagens.
O local é relativamente plano. Apesar de me terem dito que Gorzów é concedida como a cidade das sete colinas, esta coincidência com Lisboa fica-se pela retórica. As colinas são muito suaves, quase imperceptíveis. Deslizam suavemente em direcção ao rio, num declive que não pára umas centenas de metros antes do rio, num aluvião fértil onde acamam alguns campos de vegetais – afinal uma das características deste grande país, marcado por uma acentuada ruralidade, pela elevada importância do sector agrícola.
(Em Lubniewice)
Ao desembarcar na estação de Gorzów estavam duas pessoas à minha espera. Uma professora da universidade e um aluno que, no semestre anterior, tinha estado no Porto ao abrigo de um intercâmbio de estudantes. Em breves minutos, os meus anfitriões desdobraram-se numa preocupação de se desculparem pelo atraso em que esta parte do país está mergulhada. Mal pousei o pé na gare de Gorzów, tive a primeira exibição: o ex-aluno, acabrunhado, lamentou que o meu primeiro contacto com o seu país tenha sido um comboio degradante como aquele em que tinha acabado de viajar. No dia seguinte, outra professora que fez de cicerone pela cidade voltou a tocar no mesmo assunto.
Vi nesta manifestação um sinal de embaraço pelas más condições de transporte oferecidas pela linha férrea que une esta cidade à fronteira com a Alemanha. Como se sentissem a necessidade de uma desculpa pelo desconforto daquela curta viagem. Sentia o temor que aquele era o pior cartão de visita para quem vem da Alemanha e entra na Polónia. Era necessário atenuar o embaraço pela chegada de alguém que vem do “mundo desenvolvido” e pode ficar chocado com o que vê ao entrar num país que, desde há uma dúzia de dias, também é um parceiro da União Europeia.
A segunda manifestação foi vivida logo a seguir, acabava de sair do edifício da estação. Enquanto nos encaminhávamos a pé para o exterior, ao atravessar a rua em direcção ao parque de estacionamento fui avisado pela anfitriã, também com alguma dose de vergonha, que o caro dela era “aquele carro muito velho que ali está”. Ao dizer isto acenou com a cabeça para o lado direito. Dirigi o olhar nessa direcção, onde alcancei dois carros: um pequeno e velho Fiat 500 e um grande Mercedes que devia ter tantos anos quanto eu (mais tarde ela confirmou a minha ideia: o Mercedes tem 30 anos).
As primeiras impressões diurnas da cidade e do entorno natural só as tive no dia seguinte, depois do pequeno-almoço. Quando me foram buscar ao hotel, fizemos um percurso de automóvel pela cidade, para ficar com uma primeira impressão do que podia encontrar. É uma cidade pequena (pelo número de habitantes e pela dimensão que me pude aperceber, será equivalente a Guimarães), localizada junto ao rio Warta. Sem grande beleza arquitectónica porque os soviéticos decidiram deitar abaixo, após a segunda guerra mundial, aquilo que a guerra em si não tinha destruído. Só no centro histórico ficaram alguns vestígios da construção típica de Gorzów – uns quantos edifícios de tijolo, com ornamentos a encimá-los. De resto, um marasmo total, com blocos indiferenciados, frios, impessoais, onde se acantonavam as massas acríticas que um regime asfixiante gostava de alojar.
A beleza paisagística que circunda a cidade compensa o diagnóstico. O verde invade a cidade a todo o momento, com inúmeros parques que se desdobram à medida que as ruas se sucedem. Um verde brilhante preenche a paisagem, com diversas espécies de árvores num arvoredo denso, tão denso que em certas zonas o sol não consegue penetrar entre a espessura das ramagens.
O local é relativamente plano. Apesar de me terem dito que Gorzów é concedida como a cidade das sete colinas, esta coincidência com Lisboa fica-se pela retórica. As colinas são muito suaves, quase imperceptíveis. Deslizam suavemente em direcção ao rio, num declive que não pára umas centenas de metros antes do rio, num aluvião fértil onde acamam alguns campos de vegetais – afinal uma das características deste grande país, marcado por uma acentuada ruralidade, pela elevada importância do sector agrícola.
(Em Lubniewice)
12.5.04
A enorme cultura democrática de Lula da Silva
Acabo agora de ouvir a notícia. Não, não foi na TSF. Por um lado, porque no sítio onde me encontro, algures perdido no meio da Europa oriental, as ondas da TSF não conseguem chegar. Por outro lado, porque à TSF não interessa veicular o tipo de notícias que a mais imparcial Euronews costuma transmitir. Eis a notícia: um jornalista do New York Times, destacado no Brasil, escreveu uma peça sobe os alegados abusos alcoólicos de Luís Inácio da Silva, presidente do Brasil e herói das esquerdas órfãs de referências após o decesso da mitologia ideológica que caiu com o muro de Berlim e a derrocada do comunismo, herói de outras esquerdas mais moderadas que não hesitam um segundo em se agarrar a novos ícones que arregimentem fidelidades para a sua causa.
O resultado da ousadia do jornalista foi o que se esperava. Em vez de haver um desmentido da presidência da república brasileira, com olímpico savoir faire, negando as propensões etílicas do grande timoneiro, o que aconteceu foi uma reacção desabrida. Foi dito (e cito de cor a notícia) que o tal jornalista “já não merecia o visto de permanência no Brasil”. Forma atenuada de relatar a expulsão do jornalista. De uma penada só, Lula prometeu levar o caso à justiça, para se ressarcir dos prejuízos morais que o desalmado jornalista lhe causou à sua imagem heroifica.
Não fiquei surpreendido. Quantos são os “grandes democratas”, vangloriados por tantas franjas às esquerdas, que na hora da verdade revelam este desrespeito pelo mais elementar direito à informação, à liberdade de expressão? Do que se conhece de Lula da Silva, do seu passado que remonta aos tempos de um frenético activista sindical vestido de vermelhas cores que se dão mal com os valores da tolerância e do respeito para com as opiniões diferentes, com este cadastro seria espantoso se ele conseguisse encaixar os relatos de alcoolismo.
Aliás, esta reacção excessiva parece corroborar a notícia. De outro modo não faria sentido o presidente brasileiro vir a terreiro revelar-se tão ofendido, ao ponto de empacotar o jornalista para o local de origem e prometer que virá outra vez a território brasileiro para sentar o rabo no banco dos réus para responder pela afronta inadmissível.
Imagina-se o desenlace. Os tribunais brasileiros, apesar de se presumir a independência em relação ao poder político, não terão liberdade de espírito para julgar com imparcialidade esta questão de enorme relevância nacional, diria mesmo mundial. Não se vê como os juízes poderão usar da necessária liberdade de espírito para concluir se, afinal, o jornalista estava a delirar quando escreveu sobre os devaneios etílicos do senhor presidente da república. É um caso que tem a solução que se adivinha. Assim se descobrem os alicerces democráticos deste grande democrata, bem como a confusão de valores que vai na sua cabeça atormentada.
Sim, porque se trata de uma cabeça atormentada. Imerso nas concessões ao tenebroso capitalismo que o têm distinguido desde que tomou posse, exposto à decepção de quem tanta esperança nele depositou, por esse mundo fora, como catalisador da mudança desejada, Lula deve andar martirizado por um conflito de consciência. Entre o que gostaria de fazer (a sua retórica de anos a fio, as promessas eleitorais) e o que está constrangido a fazer (daí as acusações de cedência ao “neo-liberalismo” que timidamente lhe começam a ser dirigidas). Talvez por isso, quem sabe se angustiado com o conflito interior que o mantém dividido entre o que gostaria de fazer e o que está obrigado a fazer, Lula ter-se-á entregado aos prazeres da bebida.
Oups! Esqueçam que escrevi aquela frase. Porque se vou ao Brasil ainda apanho com uma notificação para comparecer em tribunal por ofensas inadmissíveis a sua excelência, o senhor presidente da república federativa do Brasil…Afinal, nos heróis e nos mitos não se toca, porque tudo se lhes perdoa.
(Em Gorzów)
O resultado da ousadia do jornalista foi o que se esperava. Em vez de haver um desmentido da presidência da república brasileira, com olímpico savoir faire, negando as propensões etílicas do grande timoneiro, o que aconteceu foi uma reacção desabrida. Foi dito (e cito de cor a notícia) que o tal jornalista “já não merecia o visto de permanência no Brasil”. Forma atenuada de relatar a expulsão do jornalista. De uma penada só, Lula prometeu levar o caso à justiça, para se ressarcir dos prejuízos morais que o desalmado jornalista lhe causou à sua imagem heroifica.
Não fiquei surpreendido. Quantos são os “grandes democratas”, vangloriados por tantas franjas às esquerdas, que na hora da verdade revelam este desrespeito pelo mais elementar direito à informação, à liberdade de expressão? Do que se conhece de Lula da Silva, do seu passado que remonta aos tempos de um frenético activista sindical vestido de vermelhas cores que se dão mal com os valores da tolerância e do respeito para com as opiniões diferentes, com este cadastro seria espantoso se ele conseguisse encaixar os relatos de alcoolismo.
Aliás, esta reacção excessiva parece corroborar a notícia. De outro modo não faria sentido o presidente brasileiro vir a terreiro revelar-se tão ofendido, ao ponto de empacotar o jornalista para o local de origem e prometer que virá outra vez a território brasileiro para sentar o rabo no banco dos réus para responder pela afronta inadmissível.
Imagina-se o desenlace. Os tribunais brasileiros, apesar de se presumir a independência em relação ao poder político, não terão liberdade de espírito para julgar com imparcialidade esta questão de enorme relevância nacional, diria mesmo mundial. Não se vê como os juízes poderão usar da necessária liberdade de espírito para concluir se, afinal, o jornalista estava a delirar quando escreveu sobre os devaneios etílicos do senhor presidente da república. É um caso que tem a solução que se adivinha. Assim se descobrem os alicerces democráticos deste grande democrata, bem como a confusão de valores que vai na sua cabeça atormentada.
Sim, porque se trata de uma cabeça atormentada. Imerso nas concessões ao tenebroso capitalismo que o têm distinguido desde que tomou posse, exposto à decepção de quem tanta esperança nele depositou, por esse mundo fora, como catalisador da mudança desejada, Lula deve andar martirizado por um conflito de consciência. Entre o que gostaria de fazer (a sua retórica de anos a fio, as promessas eleitorais) e o que está constrangido a fazer (daí as acusações de cedência ao “neo-liberalismo” que timidamente lhe começam a ser dirigidas). Talvez por isso, quem sabe se angustiado com o conflito interior que o mantém dividido entre o que gostaria de fazer e o que está obrigado a fazer, Lula ter-se-á entregado aos prazeres da bebida.
Oups! Esqueçam que escrevi aquela frase. Porque se vou ao Brasil ainda apanho com uma notificação para comparecer em tribunal por ofensas inadmissíveis a sua excelência, o senhor presidente da república federativa do Brasil…Afinal, nos heróis e nos mitos não se toca, porque tudo se lhes perdoa.
(Em Gorzów)
11.5.04
Um pai que se pressente
A torrente de emoções refulge de cada vez que as maravilhas da tecnologia oferecem uma visão de um filho ainda nascituro. Uma correcção é devida, pelo que se soube ontem: uma filha, sim, uma filha!
Detive-me nas imagens e não resisti a ser assaltado por um presságio. Vi-me, noites em claro, afagando-a no meu colo, dando-lhe o carinho necessário para que o sono chegue. Vi-me, deleitado, a encher-me de alegria por ver o seu sono tranquilo. Como me vi, extasiado, assistindo ao doce acto da amamentação. E os banhos em que delicadamente se joga o seu corpo contra as águas tépidas que lhe trazem prazer.
Senti-me a passar o tempo, vê-la numa cornucópia a crescer. O primeiro sorriso, os primeiros sons que se exaltam num labor comunicacional. As primeiras palavras que se registam, os primeiros passos que ficam na retina guardados para a posteridade. Imagino-a, feminina, com os seus cabelos compridos, face rosada, em gestos femininos e seguros, senhora do seu querer. Correndo pelas ruas, atrás de uma borboleta que num voo errante procura dela escapar. A alegria à solta, num turbilhão de emoções próprio de quem tem a felicidade de não saber como é o mundo que a rodeia.
As primeiras palavras escritas, os minutos passados com os trabalhos da escola, a cumplicidade a crescer. Retratos de emoções sem fim, pequenos gestos que se repetem sem canseira, num mundo só nosso que não cessa de se erguer a cada dia que passa. Os afectos que se constroem, com os afagos que não se rejeitam, com as reprimendas que esboçam um choro de tristeza, mas que são depois recompensadas pelo amor que segue numa pulsão infindável. O tacto, a mão na mão, o beijo depositado com ternura na sua pele alva e macia. Actos rotineiros, mas com o significado maior de serem gestos que preenchem uma vida como o que de melhor ela encontra.
Pressinto tudo isto e vejo o tempo a passar devagar. Anseios que se desdobram com a marcha contínua de uma gravidez. Uma máscara que quero caída assim que o tempo permitir. Deixar de me pressentir pai, para assumir a peito esta condição. Para sentir que cresci para a vida, que encontrei um novo mundo. Ou tentar arranjar forma de olhar para o mundo irrecusável com olhos de ver, através do amor trazido até a mim por uma junção de sentimentos que frutificaram uma nova vida. Ser construtivo pela injecção de felicidade que uma nova vida se apresta a trazer. Uma nova vida que vem ao mundo, um roteiro para mudar uma vida que se deixa amiúde derrotar pela decepção do mundo que há lá fora.
Mas isso não interessa. Porque começo a sentir que as exigências da nova vida que aí vem obrigam a um comportamento diferente. Menos dado à introspecção, mais virado para a abertura de espírito de uma partilha com a filha anunciada. Dando-lhe ânimo para ver as coisas diferentes, para as entender como eu mesmo não as consigo ver. Quem sabe se, neste exercício, não nasce também a vontade de compreender o que hoje escapa à minha capacidade.
Eis como uma nova vida é um manancial infindável de compensações interiores. Pelo amor que jorra e obriga a uma predisposição para amar sem compromissos nem limites. E pela força de mudança que pode varrer desde o interior.
Detive-me nas imagens e não resisti a ser assaltado por um presságio. Vi-me, noites em claro, afagando-a no meu colo, dando-lhe o carinho necessário para que o sono chegue. Vi-me, deleitado, a encher-me de alegria por ver o seu sono tranquilo. Como me vi, extasiado, assistindo ao doce acto da amamentação. E os banhos em que delicadamente se joga o seu corpo contra as águas tépidas que lhe trazem prazer.
Senti-me a passar o tempo, vê-la numa cornucópia a crescer. O primeiro sorriso, os primeiros sons que se exaltam num labor comunicacional. As primeiras palavras que se registam, os primeiros passos que ficam na retina guardados para a posteridade. Imagino-a, feminina, com os seus cabelos compridos, face rosada, em gestos femininos e seguros, senhora do seu querer. Correndo pelas ruas, atrás de uma borboleta que num voo errante procura dela escapar. A alegria à solta, num turbilhão de emoções próprio de quem tem a felicidade de não saber como é o mundo que a rodeia.
As primeiras palavras escritas, os minutos passados com os trabalhos da escola, a cumplicidade a crescer. Retratos de emoções sem fim, pequenos gestos que se repetem sem canseira, num mundo só nosso que não cessa de se erguer a cada dia que passa. Os afectos que se constroem, com os afagos que não se rejeitam, com as reprimendas que esboçam um choro de tristeza, mas que são depois recompensadas pelo amor que segue numa pulsão infindável. O tacto, a mão na mão, o beijo depositado com ternura na sua pele alva e macia. Actos rotineiros, mas com o significado maior de serem gestos que preenchem uma vida como o que de melhor ela encontra.
Pressinto tudo isto e vejo o tempo a passar devagar. Anseios que se desdobram com a marcha contínua de uma gravidez. Uma máscara que quero caída assim que o tempo permitir. Deixar de me pressentir pai, para assumir a peito esta condição. Para sentir que cresci para a vida, que encontrei um novo mundo. Ou tentar arranjar forma de olhar para o mundo irrecusável com olhos de ver, através do amor trazido até a mim por uma junção de sentimentos que frutificaram uma nova vida. Ser construtivo pela injecção de felicidade que uma nova vida se apresta a trazer. Uma nova vida que vem ao mundo, um roteiro para mudar uma vida que se deixa amiúde derrotar pela decepção do mundo que há lá fora.
Mas isso não interessa. Porque começo a sentir que as exigências da nova vida que aí vem obrigam a um comportamento diferente. Menos dado à introspecção, mais virado para a abertura de espírito de uma partilha com a filha anunciada. Dando-lhe ânimo para ver as coisas diferentes, para as entender como eu mesmo não as consigo ver. Quem sabe se, neste exercício, não nasce também a vontade de compreender o que hoje escapa à minha capacidade.
Eis como uma nova vida é um manancial infindável de compensações interiores. Pelo amor que jorra e obriga a uma predisposição para amar sem compromissos nem limites. E pela força de mudança que pode varrer desde o interior.
10.5.04
O (não) ensino público
Na esteira das habituais, mediáticas, ruidosas e ainda assim inócuas presidências abertas, Sampaio dedicou parte da semana passada ao ensino. Para chegar a conclusões que não surpreendem ninguém. Que o ensino está mal, que daí resulta uma factura pesada para o país, ao desperdiçar a sua riqueza humana numa formação escolar sem qualidade. Com os estes padrões de ensino cavamos o fosso em relação aos nossos parceiros da União Europeia. Se existe melhor forma de exaurir recursos (humanos, neste caso), a deseducação vigente é um contributo inestimável.
Com o ar habitualmente compungido do senhor presidente, muitos defeitos se apontam ao que foi feito no passado. Promessas (vãs?) de mudança são gizadas, logo após os reptos presidenciais. Os responsáveis ministeriais não podem ficar calados perante o puxar de orelhas do presidente. Até porque lhes convém. Para toda a gente que passa pelo ministério da educação, o que está mal imputa-se aos antecessores – os responsáveis pelas opções duvidosas. O passado é sempre tenebroso, o futuro de mudança sucessivamente prometido anuncia-se esperançoso. E, no entanto, promessas atrás de promessas, reformas atrás de reformas, experiências atrás de experiências, o sistema de ensino continua mergulhado no destempero.
Lamentavelmente, os destinatários do sistema são as suas cobaias. Sem terem qualquer culpa, levas sucessivas de estudantes têm sido massacrados com a inépcia de “pedagogos” que adoram fazer da escola um laboratório de experimentação social. Põem em prática concepções revolucionárias de pedagogia, que depois acabam por pagar a sua factura na impreparação cada vez mais acentuada com que os estudantes chegam aos bancos da universidade.
Pergunto-me: qual será a intenção facilitista destes pseudo-pedagogos? Como enaltecer a cultura do “ensino como prazer” nos tempos que correm, em que as exigências de competitividade no meio profissional são tão intensas? Será que esta cultura de facilidades, que não motiva nos alunos um sentimento de auto-exigência, é compatível com o grau de exigência que o ensino universitário supõe? Perante o abismo entre o ensino secundário e o ensino universitário, não será este o caminho para termos as mais elevadas taxas de abandono (nas universidades) da Europa? Ou será que a intenção é, de uma vez por todas, estender o manto da pedagogia facilitista até às universidades?
Os mestres da pedagogia contemporânea deliciam-se, no seu íntimo, a congeminar novas teorias. Quanto mais não seja para manterem os seus empregos, nem que isso signifique persistir na experimentação absurda que tem lesado os estudantes que nas últimas décadas passaram pelos bancos das escolas. Nem tão pouco se preocupam com a desvantagem competitiva que, em média, apresentamos em relação aos nossos parceiros. Na arte de fazer pedagogia, tudo isto são apenas pormenores. Ainda que, na maior parte das vezes, esta arte não passe de um exercício mesquinho que apenas excita os seus autores, sem aproveitamento eficaz para o país.
Corre o tempo e mantém-se a ditadura destes pedagogos. Com uma influência desmesurada, que tantos danos tem provocado no sistema educativo, no país. Olhando para o passado, para as diabruras educacionais que se têm sucedido, concluo que o melhor sistema de ensino é aquele que deixa as crianças nas mãos das respectivas famílias, com liberdade de escolha quanto às melhores opções escolares. Pelo menos as famílias têm contacto com o mundo real e sentem quais as necessidades que o futuro convoca. Não estão, como os pedagogos, encerrados num mundo virtual feito de experimentação social.
Com o ar habitualmente compungido do senhor presidente, muitos defeitos se apontam ao que foi feito no passado. Promessas (vãs?) de mudança são gizadas, logo após os reptos presidenciais. Os responsáveis ministeriais não podem ficar calados perante o puxar de orelhas do presidente. Até porque lhes convém. Para toda a gente que passa pelo ministério da educação, o que está mal imputa-se aos antecessores – os responsáveis pelas opções duvidosas. O passado é sempre tenebroso, o futuro de mudança sucessivamente prometido anuncia-se esperançoso. E, no entanto, promessas atrás de promessas, reformas atrás de reformas, experiências atrás de experiências, o sistema de ensino continua mergulhado no destempero.
Lamentavelmente, os destinatários do sistema são as suas cobaias. Sem terem qualquer culpa, levas sucessivas de estudantes têm sido massacrados com a inépcia de “pedagogos” que adoram fazer da escola um laboratório de experimentação social. Põem em prática concepções revolucionárias de pedagogia, que depois acabam por pagar a sua factura na impreparação cada vez mais acentuada com que os estudantes chegam aos bancos da universidade.
Pergunto-me: qual será a intenção facilitista destes pseudo-pedagogos? Como enaltecer a cultura do “ensino como prazer” nos tempos que correm, em que as exigências de competitividade no meio profissional são tão intensas? Será que esta cultura de facilidades, que não motiva nos alunos um sentimento de auto-exigência, é compatível com o grau de exigência que o ensino universitário supõe? Perante o abismo entre o ensino secundário e o ensino universitário, não será este o caminho para termos as mais elevadas taxas de abandono (nas universidades) da Europa? Ou será que a intenção é, de uma vez por todas, estender o manto da pedagogia facilitista até às universidades?
Os mestres da pedagogia contemporânea deliciam-se, no seu íntimo, a congeminar novas teorias. Quanto mais não seja para manterem os seus empregos, nem que isso signifique persistir na experimentação absurda que tem lesado os estudantes que nas últimas décadas passaram pelos bancos das escolas. Nem tão pouco se preocupam com a desvantagem competitiva que, em média, apresentamos em relação aos nossos parceiros. Na arte de fazer pedagogia, tudo isto são apenas pormenores. Ainda que, na maior parte das vezes, esta arte não passe de um exercício mesquinho que apenas excita os seus autores, sem aproveitamento eficaz para o país.
Corre o tempo e mantém-se a ditadura destes pedagogos. Com uma influência desmesurada, que tantos danos tem provocado no sistema educativo, no país. Olhando para o passado, para as diabruras educacionais que se têm sucedido, concluo que o melhor sistema de ensino é aquele que deixa as crianças nas mãos das respectivas famílias, com liberdade de escolha quanto às melhores opções escolares. Pelo menos as famílias têm contacto com o mundo real e sentem quais as necessidades que o futuro convoca. Não estão, como os pedagogos, encerrados num mundo virtual feito de experimentação social.
7.5.04
Bairrismo ou provincianismo saloio?
É uma característica que preenche o quotidiano das pessoas da cidade onde nasci e quase sempre vivi – o Porto. A defesa arreigada da urbe e dos seus habitantes, em nome de um pólo alternativo que não se resigna ao centralismo da capital, essa cidade rival que tantos ódios incendia entre os mais convictos advogados da excelsa invicta.
Habituei-me a conviver com as pessoas que habitam a cidade. Só que fui construindo uma forma diferente de ver a cidade de que tanto gosto. Sem resvalar para uma paixão irracional, exacerbada, exagerada mesmo. Compreendo a retórica que enaltece o esforço sofrido de uma história diferenciada, acentuando as características de uma cidade que, oásis no país, nunca sucumbiu a investidas estrangeiras. Elogiando a têmpera dura destas gentes, sempre prontas a quebrar antes que torcer perante adversidades preparadas para ceifar a identidade cimentada a tanto custo.
Estes factores de identificação colectiva são, hoje, razão de um acantonamento irracional. Mais do que cultivar os sinais de pertença colectiva, os bairristas deixam-se dominar por um ódio visceral contra a Lisboa que retrata um país que se habituou a excessos de centralização. É um movimento que se auto-alimenta. Quanto mais Lisboa concentra em si as atenções, maior é o ódio destilado pelos portuenses que desprezam a rival cidade.
Sempre rejeitei o ódio como sentimento interior. Logo, não me revejo no comportamento negativista que sustenta este bairrismo. Inquieta-me observar como os mais incisivos bairristas exageram na exaltação das virtudes da cidade. Como se ela não possuísse os seus pecadilhos. Como se as suas gentes não fossem invadidas, e com uma frequência assustadora, por sentimentos deploráveis.
A identificação colectiva que alicerça o bairrismo deixa de ser salutar. Passa a estar invadida por um gérmen que corrói um genuíno sentimento regional de pertença, para ser ocupado por um intuição de rejeição do outro que é o “rival”. Mais do que exaltar os traços desta pertença regional, erguem-se os cavalos de batalha que nos distinguem do “inimigo”, jocosamente apelidado de “mouro”, num esclarecimento histórico que demonstra uma pretensa superioridade intelectual. Um regionalismo patético, fermentado por um ódio visceral contra a Lisboa centralista.
É curioso verificar que a forma de lutar contra os exageros de centralização revelados pelo “síndrome do Terreiro do Paço” é advogar uma centralidade alternativa, que rivalize com a lisboeta. Ou seja, em vez de termos um Terreiro do Paço teríamos dois, com o outro localizado na Avenida dos Aliados. Neste estaria reunido todo o norte, ou quem sabe, num assomo de maior ambição, todo o território que se estende até ao centro do país e que não se revê na dominação centralista de Lisboa. Estranha ambição desmedida, que se resume a formar dois círculos concêntricos que, no caso do nortenho, é a confissão de um apetite idêntico àquilo que tanto se combate na forma do “síndrome do Terreiro do Paço”.
Não, não é um bairrismo salutar o que percorre as ruas desgastadas da minha cidade. É um provincianismo tacanho, que olha com desdém para uma cidade maior que, por desditas históricas, tanta atenção mobiliza. Uma inveja que corrói por dentro, germinando um sentimento inconfessado de querer rivalizar com esta centralidade, numa alavanca para outro centralismo que sufoca outras identidades regionais que são convidadas a formar esta centralidade alternativa.
Habituei-me a conviver com as pessoas que habitam a cidade. Só que fui construindo uma forma diferente de ver a cidade de que tanto gosto. Sem resvalar para uma paixão irracional, exacerbada, exagerada mesmo. Compreendo a retórica que enaltece o esforço sofrido de uma história diferenciada, acentuando as características de uma cidade que, oásis no país, nunca sucumbiu a investidas estrangeiras. Elogiando a têmpera dura destas gentes, sempre prontas a quebrar antes que torcer perante adversidades preparadas para ceifar a identidade cimentada a tanto custo.
Estes factores de identificação colectiva são, hoje, razão de um acantonamento irracional. Mais do que cultivar os sinais de pertença colectiva, os bairristas deixam-se dominar por um ódio visceral contra a Lisboa que retrata um país que se habituou a excessos de centralização. É um movimento que se auto-alimenta. Quanto mais Lisboa concentra em si as atenções, maior é o ódio destilado pelos portuenses que desprezam a rival cidade.
Sempre rejeitei o ódio como sentimento interior. Logo, não me revejo no comportamento negativista que sustenta este bairrismo. Inquieta-me observar como os mais incisivos bairristas exageram na exaltação das virtudes da cidade. Como se ela não possuísse os seus pecadilhos. Como se as suas gentes não fossem invadidas, e com uma frequência assustadora, por sentimentos deploráveis.
A identificação colectiva que alicerça o bairrismo deixa de ser salutar. Passa a estar invadida por um gérmen que corrói um genuíno sentimento regional de pertença, para ser ocupado por um intuição de rejeição do outro que é o “rival”. Mais do que exaltar os traços desta pertença regional, erguem-se os cavalos de batalha que nos distinguem do “inimigo”, jocosamente apelidado de “mouro”, num esclarecimento histórico que demonstra uma pretensa superioridade intelectual. Um regionalismo patético, fermentado por um ódio visceral contra a Lisboa centralista.
É curioso verificar que a forma de lutar contra os exageros de centralização revelados pelo “síndrome do Terreiro do Paço” é advogar uma centralidade alternativa, que rivalize com a lisboeta. Ou seja, em vez de termos um Terreiro do Paço teríamos dois, com o outro localizado na Avenida dos Aliados. Neste estaria reunido todo o norte, ou quem sabe, num assomo de maior ambição, todo o território que se estende até ao centro do país e que não se revê na dominação centralista de Lisboa. Estranha ambição desmedida, que se resume a formar dois círculos concêntricos que, no caso do nortenho, é a confissão de um apetite idêntico àquilo que tanto se combate na forma do “síndrome do Terreiro do Paço”.
Não, não é um bairrismo salutar o que percorre as ruas desgastadas da minha cidade. É um provincianismo tacanho, que olha com desdém para uma cidade maior que, por desditas históricas, tanta atenção mobiliza. Uma inveja que corrói por dentro, germinando um sentimento inconfessado de querer rivalizar com esta centralidade, numa alavanca para outro centralismo que sufoca outras identidades regionais que são convidadas a formar esta centralidade alternativa.
6.5.04
Requiem pela comunicação social
Mergulho nos tachos, misturando o Mascarpone com as gemas batidas em açúcar. Embebidos os palitos La Reine em café, depois aspergidos com rum, está a televisão ligada com os repórteres de rua em alta gritaria, relatando cada segundo da “libertação” de Carlos Cruz.
Ia deitando uma olhadela à televisão, ia pasmando com o espectáculo mediático que se dividiu entre a prisão de onde Cruz era libertado e o portão da sua casa no Estoril. Os habituais mirones compareceram, na patética manifestação de solidariedade (que, aposto, Cruz ignora), colorindo o espectáculo que as televisões e rádios levavam a milhões de espectadores.
À medida que os minutos iam passando, aumentava a minha perplexidade com certas informações divulgadas pelos repórteres, com o frenesim instalado, com a correria dos “famosos” a casa de Carlos Cruz, em busca de uma fotografia para alimentar (mais uma) aparição nas revistas cor-de-rosa. Como não ficar perplexo, por exemplo, com a imagem de que Carlos Cruz estava ser “libertado”? Assim mesmo, a palavra grafada, porque o seu sentido não corresponde ao contexto. Os jornalistas informavam, com esfusiante entusiasmo, que Carlos Cruz estava em liberdade, deixando para nota de rodapé a verdade – a prisão domiciliária a que tinha sido remetido. A imagem difundida era a da justiça que tardou mas chegou, finalmente. Como se o apresentador estivesse a sair definitivamente, repito, definitivamente em liberdade.
Nada me move contra Carlos Cruz. Nem sequer tenho uma opinião formada acerca do seu pretenso envolvimento no processo de pedofilia na Casa Pia. Não vou dizer que acho que ele é culpado ou inocente, porque essa é uma tarefa que cabe à justiça e não ao sexto sentido popular. O julgamento popular que os órgãos de comunicação social teimam em fazer é inaceitável. Foi o que se passou anteontem, com a ideia de que Cruz saía, vitorioso mas vergado por lágrimas de emoção, da prisão onde estava recluso.
É a comunicação social que temos, curvada a critérios fáceis de conquista de audiências, deixando à margem uma função pedagógica. Uma informação isenta e de rigor é peça essencial para que os destinatários não tenham uma visão enviesada do que se passa em seu redor. Se calhar é por isto que a comunicação social é cada vez menos imparcial e objectiva: para empurrar o público num determinado sentido...
Dizem que a comunicação social é o quarto poder. Discordo. À medida que o tempo passa, constituiu-se num genuíno primeiro poder. O poder a que todos os restantes sucumbem, cientes que a mensagem sabiamente transportada (ainda que não rigorosa) pode transformar pequenas mentiras numa verdade insofismável.
Paradoxalmente, a comunicação social eleva-se a um estatuto de ímpar importância numa era em que a sua qualidade, isenção e rigor sofrem um desgaste evidente. O sucesso da comunicação social varia num sentido inverso da qualidade, isenção e rigor da informação. É o nivelamento por baixo. Consequência da “democratização” da informação, que é avidamente procurada por cada vez mais gente, independentemente de condição social e habilitações escolares. Afinal, está tudo certo. Temos a comunicação social que vai ao encontro dos desejos da maioria dos cidadãos. É neste sentido que a “democratização” (não sei se será mais correcto falar em “massificação”, ou mesmo “fulanização”) da informação é uma dádiva da participação dos cidadãos na sociedade.
Pela parte que me toca, um desejo: deixar a dependência do consumo de informação, desligar-me do mundo enviesado que me é trazido, olhar para coisas mais belas que passam debaixo do nariz mas que os olhos não alcançam (ou não querem alcançar).
Ia deitando uma olhadela à televisão, ia pasmando com o espectáculo mediático que se dividiu entre a prisão de onde Cruz era libertado e o portão da sua casa no Estoril. Os habituais mirones compareceram, na patética manifestação de solidariedade (que, aposto, Cruz ignora), colorindo o espectáculo que as televisões e rádios levavam a milhões de espectadores.
À medida que os minutos iam passando, aumentava a minha perplexidade com certas informações divulgadas pelos repórteres, com o frenesim instalado, com a correria dos “famosos” a casa de Carlos Cruz, em busca de uma fotografia para alimentar (mais uma) aparição nas revistas cor-de-rosa. Como não ficar perplexo, por exemplo, com a imagem de que Carlos Cruz estava ser “libertado”? Assim mesmo, a palavra grafada, porque o seu sentido não corresponde ao contexto. Os jornalistas informavam, com esfusiante entusiasmo, que Carlos Cruz estava em liberdade, deixando para nota de rodapé a verdade – a prisão domiciliária a que tinha sido remetido. A imagem difundida era a da justiça que tardou mas chegou, finalmente. Como se o apresentador estivesse a sair definitivamente, repito, definitivamente em liberdade.
Nada me move contra Carlos Cruz. Nem sequer tenho uma opinião formada acerca do seu pretenso envolvimento no processo de pedofilia na Casa Pia. Não vou dizer que acho que ele é culpado ou inocente, porque essa é uma tarefa que cabe à justiça e não ao sexto sentido popular. O julgamento popular que os órgãos de comunicação social teimam em fazer é inaceitável. Foi o que se passou anteontem, com a ideia de que Cruz saía, vitorioso mas vergado por lágrimas de emoção, da prisão onde estava recluso.
É a comunicação social que temos, curvada a critérios fáceis de conquista de audiências, deixando à margem uma função pedagógica. Uma informação isenta e de rigor é peça essencial para que os destinatários não tenham uma visão enviesada do que se passa em seu redor. Se calhar é por isto que a comunicação social é cada vez menos imparcial e objectiva: para empurrar o público num determinado sentido...
Dizem que a comunicação social é o quarto poder. Discordo. À medida que o tempo passa, constituiu-se num genuíno primeiro poder. O poder a que todos os restantes sucumbem, cientes que a mensagem sabiamente transportada (ainda que não rigorosa) pode transformar pequenas mentiras numa verdade insofismável.
Paradoxalmente, a comunicação social eleva-se a um estatuto de ímpar importância numa era em que a sua qualidade, isenção e rigor sofrem um desgaste evidente. O sucesso da comunicação social varia num sentido inverso da qualidade, isenção e rigor da informação. É o nivelamento por baixo. Consequência da “democratização” da informação, que é avidamente procurada por cada vez mais gente, independentemente de condição social e habilitações escolares. Afinal, está tudo certo. Temos a comunicação social que vai ao encontro dos desejos da maioria dos cidadãos. É neste sentido que a “democratização” (não sei se será mais correcto falar em “massificação”, ou mesmo “fulanização”) da informação é uma dádiva da participação dos cidadãos na sociedade.
Pela parte que me toca, um desejo: deixar a dependência do consumo de informação, desligar-me do mundo enviesado que me é trazido, olhar para coisas mais belas que passam debaixo do nariz mas que os olhos não alcançam (ou não querem alcançar).
5.5.04
Sobre as torturas a presos iraquianos
Os últimos dias têm sido pródigos em notícias bombásticas sobre as torturas, humilhações e tratamentos indignos aplicados a presos iraquianos por militares norte-americanos e britânicos. Levantando uma onda de indignação que tem percorrido o mundo.
As imagens divulgadas fazem reflectir sobre a natureza humana. Fazem-me pensar que indistintamente dos códigos políticos que guiam os países (sejam eles democráticos ou com propensões ditatoriais) fervilha um gérmen de violência, de desprezo pelo próximo, que faz a raça humana ser vítima da sua natural estupidez. Sem surpresa, afinal. Em tempo de queima das fitas, basta relembrar as brincadeiras de mau gosto que a estudantada, ano após ano, numa espiral sem limites, põe em prática na recepção aos caloiros. É só percorrer o cardápio de praxes maliciosas que se congeminam, acobertadas pela “tradição universitária” que tudo justifica – mesmo as praxes mais doentias que revelam comportamentos que tocam a psicopatia.
Quando vejo as fotografias das humilhações contra presos iraquianos não deixo de meditar que o ser humano tem esta queda inata para o precipício. Para zurzir do adversário, para o achincalhar, levando-o ao rebaixamento psicológico que o enfraquece e deixa mais ainda à mercê de quem já se encontra numa posição de superioridade física. Aqui, como em tantas vezes, é sempre mais fácil bater no mais fraco. Sobretudo quando ele já está manietado e nada pode fazer. Imagino as “delícias” dos carcereiros ao praticarem estas sevícias sobre presos acorrentados, vendados, imobilizados, sem defesa.
Apesar do asco que imagens destas me causam, devo admitir, em abono dos Estados Unidos e do Reino Unido, que a revelação de tais situações só foi possível porque nestes países é difícil esconder este tipo de coisas da opinião pública. Sobretudo quando existe uma comunicação social poderosa e que cultiva deveres pedagógicos para com a sua audiência. Bem sei que a divulgação das fotografias com as humilhações perpetradas sobre os presos provoca uma onda de choque que é boa, nos tempos que correm, para o negócio das audiências que sustenta a concorrência entre os órgãos de informação.
Mas não se pode duvidar dos préstimos pedagógicos da publicação daquelas fotografias. Por um lado, estes segredos, muito incómodos para as autoridades dos dois países, passaram por cima da “razão de Estado” e chegaram ao conhecimento público. Por outro lado, os responsáveis políticos norte-americanos e britânicos vieram a público reconhecer que tais comportamentos eram inadmissíveis e que os culpados vão ser julgados. Falta saber se esta promessa não passa de retórica para aquietar as consciências incomodadas. Falta saber se os responsáveis (alguns entretanto suspensos) vão ser penalizados por estes comportamentos nada próprios da civilização mais adiantada que, daqueles lados, não se cansam de apregoar.
Seja como for, é de enaltecer que estes episódios tenham vindo a lume. Que não tenha sido possível escondê-los nos esconsos gabinetes de um qualquer militar zeloso. Não interessa saber se houve ou não esta tentativa de acobertamento. Quero apenas aplaudir as reacções oficiais de censura perante tais brincadeiras de mau gosto. Noutras paragens menos dadas ao pluralismo político, tanto do agrado daqueles que não se cansam de invectivar os Estados Unidos (e nisto estamos em harmonia, muitas vezes…), nunca se admite o espezinhamento dos direitos humanos de quem se vê privado da liberdade, quantas vezes por um simples delito de opinião.
As imagens divulgadas fazem reflectir sobre a natureza humana. Fazem-me pensar que indistintamente dos códigos políticos que guiam os países (sejam eles democráticos ou com propensões ditatoriais) fervilha um gérmen de violência, de desprezo pelo próximo, que faz a raça humana ser vítima da sua natural estupidez. Sem surpresa, afinal. Em tempo de queima das fitas, basta relembrar as brincadeiras de mau gosto que a estudantada, ano após ano, numa espiral sem limites, põe em prática na recepção aos caloiros. É só percorrer o cardápio de praxes maliciosas que se congeminam, acobertadas pela “tradição universitária” que tudo justifica – mesmo as praxes mais doentias que revelam comportamentos que tocam a psicopatia.
Quando vejo as fotografias das humilhações contra presos iraquianos não deixo de meditar que o ser humano tem esta queda inata para o precipício. Para zurzir do adversário, para o achincalhar, levando-o ao rebaixamento psicológico que o enfraquece e deixa mais ainda à mercê de quem já se encontra numa posição de superioridade física. Aqui, como em tantas vezes, é sempre mais fácil bater no mais fraco. Sobretudo quando ele já está manietado e nada pode fazer. Imagino as “delícias” dos carcereiros ao praticarem estas sevícias sobre presos acorrentados, vendados, imobilizados, sem defesa.
Apesar do asco que imagens destas me causam, devo admitir, em abono dos Estados Unidos e do Reino Unido, que a revelação de tais situações só foi possível porque nestes países é difícil esconder este tipo de coisas da opinião pública. Sobretudo quando existe uma comunicação social poderosa e que cultiva deveres pedagógicos para com a sua audiência. Bem sei que a divulgação das fotografias com as humilhações perpetradas sobre os presos provoca uma onda de choque que é boa, nos tempos que correm, para o negócio das audiências que sustenta a concorrência entre os órgãos de informação.
Mas não se pode duvidar dos préstimos pedagógicos da publicação daquelas fotografias. Por um lado, estes segredos, muito incómodos para as autoridades dos dois países, passaram por cima da “razão de Estado” e chegaram ao conhecimento público. Por outro lado, os responsáveis políticos norte-americanos e britânicos vieram a público reconhecer que tais comportamentos eram inadmissíveis e que os culpados vão ser julgados. Falta saber se esta promessa não passa de retórica para aquietar as consciências incomodadas. Falta saber se os responsáveis (alguns entretanto suspensos) vão ser penalizados por estes comportamentos nada próprios da civilização mais adiantada que, daqueles lados, não se cansam de apregoar.
Seja como for, é de enaltecer que estes episódios tenham vindo a lume. Que não tenha sido possível escondê-los nos esconsos gabinetes de um qualquer militar zeloso. Não interessa saber se houve ou não esta tentativa de acobertamento. Quero apenas aplaudir as reacções oficiais de censura perante tais brincadeiras de mau gosto. Noutras paragens menos dadas ao pluralismo político, tanto do agrado daqueles que não se cansam de invectivar os Estados Unidos (e nisto estamos em harmonia, muitas vezes…), nunca se admite o espezinhamento dos direitos humanos de quem se vê privado da liberdade, quantas vezes por um simples delito de opinião.
4.5.04
Mais uma armadilha do anti-tabagismo militante
Às vezes somos apanhados por imprevistos inusitados. Quando nada faz prever que a surpresa aconteça, eis que num simples estalar de dedos acabamos encurralados sem saber por onde escapar.
Estava numa aula a tentar explicar o que acontece quando o Estado impõe obstáculos às importações através de direitos aduaneiros (que a comunicação social erradamente trata por “tarifas”). Um desses efeitos é a receita que o Estado arrecada ao multiplicar o direito aduaneiro por cada unidade do bem importado. Estava nesta demonstração de como os direitos aduaneiros são vantajosos para uma política do estilo Manuela Ferreira Leite (aumento das receitas de impostos, bem entendido…), quando tentei fazer ver aos meus alunos que nestas coisas uma receita corresponde a um sacrifício noutro ponto qualquer. Perguntei-lhes: para o Estado beneficiar desta receita, quem é penalizado? Ofereci-lhes duas hipóteses: todos os contribuintes, ou apenas os consumidores do produto importado que se sujeita ao direito aduaneiro?
Para os habilitar a uma melhor compreensão do fenómeno, construí uma hipótese de trabalho. Pedi-lhes que imaginassem que o direito aduaneiro se aplicava sobre a importação de tabaco com origem nos Estados Unidos. De seguida, perguntei aos presentes quem era fumador. Observei algum incómodo nos alunos que confirmaram a condição de fumador, perante o à vontade da minoria que não era fumadora. Nessa altura tentei desanuviar o ambiente. Como sabiam que não sou fumador, talvez fosse esta a justificação do embaraço quando convidados a revelar se eram ou não fumadores.
Expliquei-lhes que embora não sendo fumador me irritam mais os anti-tabagistas empenhados em espalhar uma moral higiénica que não respeita os direitos alheios. Revelei-lhes que me causam repugnância os anúncios paternalistas que o Estado impõe nas embalagens de tabaco. Pedi à aluna sentada à minha frente (uma das que se havia confessado fumadora) para me emprestar por momentos o maço de tabaco que tinha dentro da sua carteira, para exemplificar o terrorismo intelectual contido nessas mensagens que ocupam mais de metade do espaço disponível da embalagem. Aqui fui apanhado de surpresa, perante o riso malévolo da aluna que já sabia qual a mensagem inscrita no maço de tabaco:
“Fumar diminui o número de espermatozóides e provoca a infertilidade masculina”.
Li para mim, num ápice, e contive-me. Não era este o tipo de mensagem que estava à espera de encontrar. Queria exemplificar com o garrafal “fumar mata” que já algumas vezes tinha visto. A hesitação apanhou-me num embaraço ainda maior. Depois de alguns segundos de atrapalhação, em que não tenho a certeza de ter ruborizado, lá revelei aos presentes o teor da mensagem, agora já em voz alta:
“Fumar diminui o número de espermatozóides e provoca a infertilidade masculina”.
Esta política de perseguição aos fumadores é pérfida. Basta ver o conteúdo da mensagem incluída naquele maço de tabaco: o seu alcance castrador, levando os homens que se amedrontem com a mensagem a temer pela sua capacidade reprodutora, ou pela sua performance sexual.
É por estes excessos que, não alinhando na fileira dos fumadores, prefiro conviver com um fumador activo do que aturar os anti-tabagistas militantes que pregam uma moralidade irritante. Há anos, o inefável Eng. Macário Correia (na altura secretário de Estado do ambiente) detonou uma cruzada contra os fumadores. Ficou então conhecido por uma tirada impagável: “dar um beijo a uma fumadora é como lamber um cinzeiro”, sentenciou. Pois eu prefiro lamber um cinzeiro do que aturar os Macários deste país.
Estava numa aula a tentar explicar o que acontece quando o Estado impõe obstáculos às importações através de direitos aduaneiros (que a comunicação social erradamente trata por “tarifas”). Um desses efeitos é a receita que o Estado arrecada ao multiplicar o direito aduaneiro por cada unidade do bem importado. Estava nesta demonstração de como os direitos aduaneiros são vantajosos para uma política do estilo Manuela Ferreira Leite (aumento das receitas de impostos, bem entendido…), quando tentei fazer ver aos meus alunos que nestas coisas uma receita corresponde a um sacrifício noutro ponto qualquer. Perguntei-lhes: para o Estado beneficiar desta receita, quem é penalizado? Ofereci-lhes duas hipóteses: todos os contribuintes, ou apenas os consumidores do produto importado que se sujeita ao direito aduaneiro?
Para os habilitar a uma melhor compreensão do fenómeno, construí uma hipótese de trabalho. Pedi-lhes que imaginassem que o direito aduaneiro se aplicava sobre a importação de tabaco com origem nos Estados Unidos. De seguida, perguntei aos presentes quem era fumador. Observei algum incómodo nos alunos que confirmaram a condição de fumador, perante o à vontade da minoria que não era fumadora. Nessa altura tentei desanuviar o ambiente. Como sabiam que não sou fumador, talvez fosse esta a justificação do embaraço quando convidados a revelar se eram ou não fumadores.
Expliquei-lhes que embora não sendo fumador me irritam mais os anti-tabagistas empenhados em espalhar uma moral higiénica que não respeita os direitos alheios. Revelei-lhes que me causam repugnância os anúncios paternalistas que o Estado impõe nas embalagens de tabaco. Pedi à aluna sentada à minha frente (uma das que se havia confessado fumadora) para me emprestar por momentos o maço de tabaco que tinha dentro da sua carteira, para exemplificar o terrorismo intelectual contido nessas mensagens que ocupam mais de metade do espaço disponível da embalagem. Aqui fui apanhado de surpresa, perante o riso malévolo da aluna que já sabia qual a mensagem inscrita no maço de tabaco:
“Fumar diminui o número de espermatozóides e provoca a infertilidade masculina”.
Li para mim, num ápice, e contive-me. Não era este o tipo de mensagem que estava à espera de encontrar. Queria exemplificar com o garrafal “fumar mata” que já algumas vezes tinha visto. A hesitação apanhou-me num embaraço ainda maior. Depois de alguns segundos de atrapalhação, em que não tenho a certeza de ter ruborizado, lá revelei aos presentes o teor da mensagem, agora já em voz alta:
“Fumar diminui o número de espermatozóides e provoca a infertilidade masculina”.
Esta política de perseguição aos fumadores é pérfida. Basta ver o conteúdo da mensagem incluída naquele maço de tabaco: o seu alcance castrador, levando os homens que se amedrontem com a mensagem a temer pela sua capacidade reprodutora, ou pela sua performance sexual.
É por estes excessos que, não alinhando na fileira dos fumadores, prefiro conviver com um fumador activo do que aturar os anti-tabagistas militantes que pregam uma moralidade irritante. Há anos, o inefável Eng. Macário Correia (na altura secretário de Estado do ambiente) detonou uma cruzada contra os fumadores. Ficou então conhecido por uma tirada impagável: “dar um beijo a uma fumadora é como lamber um cinzeiro”, sentenciou. Pois eu prefiro lamber um cinzeiro do que aturar os Macários deste país.
3.5.04
Saudades das nacionalizações…
Quem as não tem? Sim, há um grupelho do costume, ainda agarrado à tralha ideológica anacrónica. São esses que se apressam a vasculhar num baú empoeirado as memórias dos tempos gloriosos das nacionalizações. Mas não são os únicos. À semelhança dos trinta anos da revolução de Abril como uma apologia da “evolução”, outros espíritos “incontornáveis” do panorama nacional também evoluíram. Neste caso, é mais acertado dizer que se trata de retrocesso que devia beliscar a coerência de quem proferiu declarações saudosistas dos tempos das nacionalizações.
Quem, afinal, veio a público destilar saudades das nacionalizações? Foi Mário Soares, Avenida da Liberdade abaixo, braço dado com aqueles que combateu em nome do pluralismo democrático que saiu vencedor em 25 de Novembro de 1975. Ainda estou para perceber se estas declarações foram uma cortesia para com os organizadores da marcha bafienta. Ou se é a enésima exibição de esclerose mental do senhor. Ou se estava assoberbado pelo calor que apertava, um calor fora de época que o fez aparecer perante as câmaras da televisão afogueado dentro do seu casaco de Inverno, gravata com o nó deslaçado cinco dedos abaixo do pescoço, numa moda popularizada por outro incontinente verbal da nossa praça, Mourinho.
Levando a sério as palavras de Soares (um desafio à saúde mental), são muitas as interrogações que pairam no ar. O que move Soares a remar contra a maré? O que o faz dar cambalhotas dignas do melhor malabarista quando apregoa as saudades das nacionalizações, sendo ele um emérito representante do capitalismo? Quais as razões da deriva radical esquerdista, quando o comportamento normal de estadistas a caminho da velhice é o de acalmarem ideologias e recusarem visões radicais por eles mesmos suportadas no passado? Deve-se dar crédito ao senhor, apenas pelo seu passado, apenas porque é uma “referência incontornável” do regime? Deve-se perdoar todos os disparates que diz, apenas em nome da dívida que temos pelas garantias de pluralismo que ajudou a instalar? Ou teremos que nos curvar perante sua eminência, dizendo ámen às suas opiniões, apenas porque tem múltiplos doutoramentos honoris causa (basta ler o seu pavoneante curriculum vitae na página da Internet do Parlamento Europeu), como se estes graus académicos tivessem, no seu caso, algum reconhecimento científico?
Ao escutar estas afirmações apeteceu-me entrar no mundo do faz-de-conta. Imaginar um mundo em que a ficção científica perdesse o seu carácter fictício. Que fosse possível fazer viagens ao passado, e colocar o Dr. Soares num veículo espacial que retrocedesse trinta anos. Uma viagem sem regresso, já agora. Para o ver ao lado das forças totalitaristas que foram responsáveis pelas iníquas nacionalizações, defendo este atentado à propriedade privada, estendendo a mão a todos aqueles que viam no nefando capitalismo um atentado contra os direitos dos trabalhadores. Gostei de fechar os olhos e de imaginar essa viagem ao passado, só com bilhete de ida. Porque hoje o Dr. Soares não teria o abastado património que lhe é conhecido, e decerto teria sido engolido pela voragem totalitarista dos seus aliados de convivência, que lacaios de outros interesses internacionalistas em breve deixariam cair Soares.
A memória é curta. Dos protagonistas deste calibre, nas suas piruetas mirabolantes, sempre de face emproada, empunhando uma superior razão moral. Mas a memória também é curta do lado dos destinatários destas palavras que são religiosamente transmitidas pela comunicação social. E ainda há quem se insurja contra o revisionismo. E estas distorções soaristas, com o abrangente beneplácito dos órgãos de informação, não são um revisionismo do pior jaez?
Quem, afinal, veio a público destilar saudades das nacionalizações? Foi Mário Soares, Avenida da Liberdade abaixo, braço dado com aqueles que combateu em nome do pluralismo democrático que saiu vencedor em 25 de Novembro de 1975. Ainda estou para perceber se estas declarações foram uma cortesia para com os organizadores da marcha bafienta. Ou se é a enésima exibição de esclerose mental do senhor. Ou se estava assoberbado pelo calor que apertava, um calor fora de época que o fez aparecer perante as câmaras da televisão afogueado dentro do seu casaco de Inverno, gravata com o nó deslaçado cinco dedos abaixo do pescoço, numa moda popularizada por outro incontinente verbal da nossa praça, Mourinho.
Levando a sério as palavras de Soares (um desafio à saúde mental), são muitas as interrogações que pairam no ar. O que move Soares a remar contra a maré? O que o faz dar cambalhotas dignas do melhor malabarista quando apregoa as saudades das nacionalizações, sendo ele um emérito representante do capitalismo? Quais as razões da deriva radical esquerdista, quando o comportamento normal de estadistas a caminho da velhice é o de acalmarem ideologias e recusarem visões radicais por eles mesmos suportadas no passado? Deve-se dar crédito ao senhor, apenas pelo seu passado, apenas porque é uma “referência incontornável” do regime? Deve-se perdoar todos os disparates que diz, apenas em nome da dívida que temos pelas garantias de pluralismo que ajudou a instalar? Ou teremos que nos curvar perante sua eminência, dizendo ámen às suas opiniões, apenas porque tem múltiplos doutoramentos honoris causa (basta ler o seu pavoneante curriculum vitae na página da Internet do Parlamento Europeu), como se estes graus académicos tivessem, no seu caso, algum reconhecimento científico?
Ao escutar estas afirmações apeteceu-me entrar no mundo do faz-de-conta. Imaginar um mundo em que a ficção científica perdesse o seu carácter fictício. Que fosse possível fazer viagens ao passado, e colocar o Dr. Soares num veículo espacial que retrocedesse trinta anos. Uma viagem sem regresso, já agora. Para o ver ao lado das forças totalitaristas que foram responsáveis pelas iníquas nacionalizações, defendo este atentado à propriedade privada, estendendo a mão a todos aqueles que viam no nefando capitalismo um atentado contra os direitos dos trabalhadores. Gostei de fechar os olhos e de imaginar essa viagem ao passado, só com bilhete de ida. Porque hoje o Dr. Soares não teria o abastado património que lhe é conhecido, e decerto teria sido engolido pela voragem totalitarista dos seus aliados de convivência, que lacaios de outros interesses internacionalistas em breve deixariam cair Soares.
A memória é curta. Dos protagonistas deste calibre, nas suas piruetas mirabolantes, sempre de face emproada, empunhando uma superior razão moral. Mas a memória também é curta do lado dos destinatários destas palavras que são religiosamente transmitidas pela comunicação social. E ainda há quem se insurja contra o revisionismo. E estas distorções soaristas, com o abrangente beneplácito dos órgãos de informação, não são um revisionismo do pior jaez?
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