É uma característica que preenche o quotidiano das pessoas da cidade onde nasci e quase sempre vivi – o Porto. A defesa arreigada da urbe e dos seus habitantes, em nome de um pólo alternativo que não se resigna ao centralismo da capital, essa cidade rival que tantos ódios incendia entre os mais convictos advogados da excelsa invicta.
Habituei-me a conviver com as pessoas que habitam a cidade. Só que fui construindo uma forma diferente de ver a cidade de que tanto gosto. Sem resvalar para uma paixão irracional, exacerbada, exagerada mesmo. Compreendo a retórica que enaltece o esforço sofrido de uma história diferenciada, acentuando as características de uma cidade que, oásis no país, nunca sucumbiu a investidas estrangeiras. Elogiando a têmpera dura destas gentes, sempre prontas a quebrar antes que torcer perante adversidades preparadas para ceifar a identidade cimentada a tanto custo.
Estes factores de identificação colectiva são, hoje, razão de um acantonamento irracional. Mais do que cultivar os sinais de pertença colectiva, os bairristas deixam-se dominar por um ódio visceral contra a Lisboa que retrata um país que se habituou a excessos de centralização. É um movimento que se auto-alimenta. Quanto mais Lisboa concentra em si as atenções, maior é o ódio destilado pelos portuenses que desprezam a rival cidade.
Sempre rejeitei o ódio como sentimento interior. Logo, não me revejo no comportamento negativista que sustenta este bairrismo. Inquieta-me observar como os mais incisivos bairristas exageram na exaltação das virtudes da cidade. Como se ela não possuísse os seus pecadilhos. Como se as suas gentes não fossem invadidas, e com uma frequência assustadora, por sentimentos deploráveis.
A identificação colectiva que alicerça o bairrismo deixa de ser salutar. Passa a estar invadida por um gérmen que corrói um genuíno sentimento regional de pertença, para ser ocupado por um intuição de rejeição do outro que é o “rival”. Mais do que exaltar os traços desta pertença regional, erguem-se os cavalos de batalha que nos distinguem do “inimigo”, jocosamente apelidado de “mouro”, num esclarecimento histórico que demonstra uma pretensa superioridade intelectual. Um regionalismo patético, fermentado por um ódio visceral contra a Lisboa centralista.
É curioso verificar que a forma de lutar contra os exageros de centralização revelados pelo “síndrome do Terreiro do Paço” é advogar uma centralidade alternativa, que rivalize com a lisboeta. Ou seja, em vez de termos um Terreiro do Paço teríamos dois, com o outro localizado na Avenida dos Aliados. Neste estaria reunido todo o norte, ou quem sabe, num assomo de maior ambição, todo o território que se estende até ao centro do país e que não se revê na dominação centralista de Lisboa. Estranha ambição desmedida, que se resume a formar dois círculos concêntricos que, no caso do nortenho, é a confissão de um apetite idêntico àquilo que tanto se combate na forma do “síndrome do Terreiro do Paço”.
Não, não é um bairrismo salutar o que percorre as ruas desgastadas da minha cidade. É um provincianismo tacanho, que olha com desdém para uma cidade maior que, por desditas históricas, tanta atenção mobiliza. Uma inveja que corrói por dentro, germinando um sentimento inconfessado de querer rivalizar com esta centralidade, numa alavanca para outro centralismo que sufoca outras identidades regionais que são convidadas a formar esta centralidade alternativa.
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