O último sábado foi passado num longo bocejo enjoativo, com o denominado “casamento real” em Madrid. O princepezinho sem sal, depois de muitas tentativas para encontrar a princesa perfeita, lá acabou por esposar a sua diva vinda da plebe. O espectáculo foi montado à velha maneira, com cerimónias de encantar, lantejoulas quanto baste, vestidos reais que enriquecem costureiros famosos, eles com trajes que só usam nestas ocasiões, para assim frisar a diferença entre os membros da realeza e o comum dos mortais.
Muito se perorou sobre o evento, em particular sobre o simbolismo de certas novidades nele contidas. As análises que ajuízam o casamento do herdeiro do trono espanhol como um ponto de viragem na monarquia trazem até a mim um sorriso de escárnio. No cerne desta opinião está a consorte escolhida. Não apenas por ser plebeia, mas sobretudo por furar as herméticas convenções nobiliárquicas ao ser divorciada. Tenta-se fazer crer que a monarquia espanhola está a dar o seu testemunho de abertura à sociedade civil. Como se este evento fosse uma perestroika monárquica, em que certos tabus mais queridos aos sectores conservadores que cirandam em redor da nobreza começam a ruir pela base, finalmente despertando para o anacronismo que eles representam.
Ouço e leio estas opiniões, mas não fico convencido. Porque todo o cerimonial de abastança, todo o ritual tributário dos costumes idos, toda a carga simbólica de um casamento real festejado com pompa e circunstância – tudo isto permanece bem vivo. Não vou dizer que a culpa seja apenas da instituição monárquica. Muita desta bajulação é alimentada pela própria população, pelos “súbditos” que insistem em deificar a monarquia como um emblema de homens de uma gesta superior que têm o dom para unir um país em torno de laços identitários comuns.
É o povo, uma larga fatia do povo (pelo menos em Espanha), que entrega os sinais de pertença nas mãos dos monarcas. É a gente comum que, inebriada pelo perfume da monarquia, presta uma vassalagem não muito diferente da que era prestada aos reis e príncipes em tempos distantes. Reconhecendo que há uma diferença a reter – hoje os monarcas não são os iluminados, braços divinos na representação terrena – os códigos de identificação que unem os “súbditos” aos monarcas continuam a perfilhar toda a lógica de antanho.
Aliás, o próprio termo “súbdito” é revelador da relação de suserania que se estabelece entre a plebe e os monarcas. Não se fala de uma condição de cidadania, mas de uma relação entre súbdito e monarca. Um sinal reiterado da essência humana, que gosta de procurar algures uma entidade que se aparenta aos poderes divinos celebrados na dimensão religiosa. A necessidade de entregar o destino individual nas mãos de outrem – deus ou rei – leva-me a concluir que as monarquias permanecem o sinal evidente da deificação que, nos dias que correm, não é imposta pelos monarcas mas antes cultivada de baixo para cima, dos súbditos em relação aos suseranos.
Os casamentos reais espelham a feira de vaidades e o mercado de sonhos que preenchem o quotidiano. Vaidades que ilustram o faz-de-conta que inunda os estratos cintilantes da sociedade (o famoso jet set). Sonhos, porque muitas candidatas a princesas (em sonhos) aproveitam os casamentos reais para, num assomo de imaginação delirante, se colocarem no lugar da eleita que arrebatou o coração do príncipe. Anteontem, com a descida dos céus protagonizada pela monarquia espanhola ao abrir as portas a uma plebeia divorciada, este sonho terá ficado mais próximo da realidade do que nunca…
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