25.5.04

Para que serve ser herói e patriota?

Por estes dias irrompeu a tempestade política em Itália. A esquerda e a direita estão divididas a propósito das exéquias de um italiano que foi sequestrado, e posteriormente assassinado, no Iraque. O senhor Quattrocchi terá dito, momentos antes de se despedir da vida, “vejam como morre um italiano”. Os sectores à direita viram em Quattrocchi um herói nacional, um símbolo vivo do patriotismo que cimenta a unidade nacional. A coligação de direita que está no governo logo se apressou a defender a realização de um funeral de Estado, com todas as honrarias inerentes. As esquerdas na oposição vieram contestar a ideia, sem contudo apresentarem argumentos sólidos. A não ser a necessidade de se insurgirem contra uma proposta que tem a chancela do governo.

Não me interessa entrar nos meandros na política doméstica italiana. Há, contudo, algumas ilações a retirar deste caso. Primeiro, uma vez mais a instrumentalização que os políticos se apressam a fazer de assuntos que dizem respeito ao íntimo das pessoas. O cidadão italiano foi morto há mais de um mês, com todo o sofrimento que lhe foi infligido, e o que a sua família foi obrigada a suportar. Os carrascos foram mais longe na ignomínia e retiveram o cadáver por mais de um mês. Só agora decidiram entregá-lo à Cruz Vermelha, para que a família possa velar os restos mortais e dar um funeral condigno.

A família e amigos de Quattrocchi deviam ser poupados a este cortejo grotesco de vaidades políticas, com os políticos de direita e esquerda a tentarem tirar partido (cada qual à sua maneira) da morte de uma pessoa. Num momento tão trágico, em que uma vida foi ceifada, não faz sentido senão respeitar o luto da família. Expor esse luto ao voyeurismo nacional, com o desfile inadmissível de declarações e contra-declarações, é o pior atentado que se pode cometer à memória de uma pessoa que já partiu do mundo dos vivos. O recato da família exigia por parte dos políticos mais contenção, mais pudor.

Em segundo lugar, a retórica utilizada pelas franjas à direita, que querem capitalizar em seu favor a transformação de Quattrocchi num herói nacional. Quem me conhece sabe da repulsa que as esquerdas me provocam, tanto pela ideologia em que se inspiram como pela acção que domina a sua agenda. Mas se não me revejo nas esquerdas, não estou, por exclusão de partes, situado à direita. Este episódio é a melhor prova de como a retórica utilizada pelas direitas me causa uma repugnância idêntica à que destilo em relação às esquerdas.

O aproveitamento demagógico que as direitas italianas estão a fazer do funeral de Quattrocchi é lamentável. O pretexto é o acto de heroísmo que foi interpretado como um chamamento ao patriotismo dos italianos. Um valor que costuma ser apregoado pelos sectores mais à direita, com as consequências bem conhecidas: superação do “eu” pelos valores do grupo (nação), sem grande diferença em relação ao colectivismo que marcou décadas de totalitarismo comunista, também ele baseado na subordinação do indivíduo perante o colectivo. Não é nesta direita que me revejo.

Terceiro, constatar que actos de heroísmo são uma estupidez desnecessária. Comportamentos que são a ocultação do indivíduo que se encerra em cada um de nós, para valorizar o todo onde nos inserimos, são uma perfeita inutilidade. O que ganhou Quattrocchi com aquela declaração, segundos antes de ser assassinado? Um estatuto de herói para a posteridade? Por quanto tempo dura esta posteridade? Daqui a um ano alguém se lembra do acto de coragem protagonizado por este italiano? Esta coragem poupou-lhe a morte?

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