Quem as não tem? Sim, há um grupelho do costume, ainda agarrado à tralha ideológica anacrónica. São esses que se apressam a vasculhar num baú empoeirado as memórias dos tempos gloriosos das nacionalizações. Mas não são os únicos. À semelhança dos trinta anos da revolução de Abril como uma apologia da “evolução”, outros espíritos “incontornáveis” do panorama nacional também evoluíram. Neste caso, é mais acertado dizer que se trata de retrocesso que devia beliscar a coerência de quem proferiu declarações saudosistas dos tempos das nacionalizações.
Quem, afinal, veio a público destilar saudades das nacionalizações? Foi Mário Soares, Avenida da Liberdade abaixo, braço dado com aqueles que combateu em nome do pluralismo democrático que saiu vencedor em 25 de Novembro de 1975. Ainda estou para perceber se estas declarações foram uma cortesia para com os organizadores da marcha bafienta. Ou se é a enésima exibição de esclerose mental do senhor. Ou se estava assoberbado pelo calor que apertava, um calor fora de época que o fez aparecer perante as câmaras da televisão afogueado dentro do seu casaco de Inverno, gravata com o nó deslaçado cinco dedos abaixo do pescoço, numa moda popularizada por outro incontinente verbal da nossa praça, Mourinho.
Levando a sério as palavras de Soares (um desafio à saúde mental), são muitas as interrogações que pairam no ar. O que move Soares a remar contra a maré? O que o faz dar cambalhotas dignas do melhor malabarista quando apregoa as saudades das nacionalizações, sendo ele um emérito representante do capitalismo? Quais as razões da deriva radical esquerdista, quando o comportamento normal de estadistas a caminho da velhice é o de acalmarem ideologias e recusarem visões radicais por eles mesmos suportadas no passado? Deve-se dar crédito ao senhor, apenas pelo seu passado, apenas porque é uma “referência incontornável” do regime? Deve-se perdoar todos os disparates que diz, apenas em nome da dívida que temos pelas garantias de pluralismo que ajudou a instalar? Ou teremos que nos curvar perante sua eminência, dizendo ámen às suas opiniões, apenas porque tem múltiplos doutoramentos honoris causa (basta ler o seu pavoneante curriculum vitae na página da Internet do Parlamento Europeu), como se estes graus académicos tivessem, no seu caso, algum reconhecimento científico?
Ao escutar estas afirmações apeteceu-me entrar no mundo do faz-de-conta. Imaginar um mundo em que a ficção científica perdesse o seu carácter fictício. Que fosse possível fazer viagens ao passado, e colocar o Dr. Soares num veículo espacial que retrocedesse trinta anos. Uma viagem sem regresso, já agora. Para o ver ao lado das forças totalitaristas que foram responsáveis pelas iníquas nacionalizações, defendo este atentado à propriedade privada, estendendo a mão a todos aqueles que viam no nefando capitalismo um atentado contra os direitos dos trabalhadores. Gostei de fechar os olhos e de imaginar essa viagem ao passado, só com bilhete de ida. Porque hoje o Dr. Soares não teria o abastado património que lhe é conhecido, e decerto teria sido engolido pela voragem totalitarista dos seus aliados de convivência, que lacaios de outros interesses internacionalistas em breve deixariam cair Soares.
A memória é curta. Dos protagonistas deste calibre, nas suas piruetas mirabolantes, sempre de face emproada, empunhando uma superior razão moral. Mas a memória também é curta do lado dos destinatários destas palavras que são religiosamente transmitidas pela comunicação social. E ainda há quem se insurja contra o revisionismo. E estas distorções soaristas, com o abrangente beneplácito dos órgãos de informação, não são um revisionismo do pior jaez?
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