19.5.04

Sobre a semi-privatização das águas

De surpresa, o governo anunciou a privatização de 49% da empresa Águas de Portugal (ADP). Como seria de esperar, logo de seguida ergueu-se um coro de protestos entre as várias esquerdas. Se a contestação dos comunistas e da esquerda radical não é novidade (para esta gente, o tempo das nacionalizações é recordado com saudade, como se no mundo em que vivemos essa figura não seja um anacronismo sem sentido), já a reacção dos socialistas merece alguns reparos.

Primeiro o coordenador para a área económica (Hasse Ferreira), e depois o incomparável secretário-geral deste partido, exibiram a sua oposição. Ferro Rodrigues distinguiu-se, mais uma vez, pelo chorrilho de disparates que o caracterizam. Asseverou que a água é um bem público e que os socialistas cá do burgo são contra a privatização da água porque, como bem público, tem que haver garantias que chega às casas de todos os cidadãos. E, adivinha-se como remate do seu brilhante raciocínio, só o Estado pode garantir este resultado.

Afirmar que a água é um bem público é a primeira falácia. Porque razão não pode o fornecimento de água ser privatizado? Será que Ferro Rodrigues não conhece outros países, mais desenvolvidos do que nós, onde o abastecimento de água é feito por empresas privadas? Com a diferença de que se trata de um serviço de melhor qualidade e com preços mais competitivos dos que os oferecidos pelos monopólios estatais. A evidência está um pouco por todo o mundo desenvolvido. Compreende-se que para o PS seja tacticamente aconselhável insurgir-se contra o que o governo vai fazendo – quanto mais não seja para dar a aparência (só a aparência…) de que faz oposição. Inaceitável é passar a ideia de que o país vive num casulo e pode evitar as experiências positivas que vêm do exterior.

Por outro lado, não há razão para o temor lançado, suspeitando que os mais desfavorecidos podem passar a viver à míngua de água. Primeiro porque é preciso contar toda a verdade sobre esta iniciativa do governo. Trata-se de uma semi-privatização, com a venda de 49% aos privados. O Estado vai manter-se como accionista maioritário, em condições de controlar o fornecimento de água ao público. As razões para alarme são outra falácia desta intervenção socialista. Como as coisas foram apresentadas, com o manto de dramatismo demagógico com que foram tingidas, até parece que o Estado vai alienar 100% do capital da ADP.

Segundo, mesmo que os privados passassem a ser os únicos responsáveis por este negócio, não se vê como isso pode ser prejudicial para o consumidor. Não há tantos domínios onde outrora o Estado era o monopolista na prestação de bens e serviços e, depois, quando estes sectores foram abertos à iniciativa privada, os consumidores focaram a ganhar? Porque motivo a água escapa a esta tendência?

Aliás este projecto do governo merece críticas, mas por razões diferentes das invocadas pelas esquerdas. É um projecto que se fica pela metade. Abrir o capital da ADP aos privados apenas em 49% permite compreender a intenção do governo: trata-se de mais uma manobra para permitir encaixe orçamental, num tempo conturbado para a gestão da política orçamental.

Continuaremos a ter o Estado a mandar no abastecimento de água. Não houve a coragem para fazer o que devia ser feito: privatizar a empresa na totalidade, para que a água que chega às nossas torneiras seja apenas uma responsabilidade de privados.

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