Tinha feito uma promessa – não escrever sobre futebol. Porque me causa repugnância o protagonismo que o futebol tem, porque há gente de mais que vive em função do futebol, porque existe uma cumplicidade grotesca entre a política e o futebol que permite aos agentes do futebol coisas que são vedadas ao comum dos mortais. E por muitas outras razões que seria fastidioso enunciar.
Mas hoje é inevitável escrever sobre futebol, depois do clube da terra ter ganho uma importante competição europeia. É inevitável, mas não pelas razões politicamente correctas. Fiquei feliz pela vitória do clube da terra? Não, não fiquei. Pelo contrário, fiquei irritado, contristado, macambúzio, exangue de orgulho, carente de motivos para me identificar com os meus conterrâneos. Afinal o Mónaco é um local idílico para se viver, onde não se paga impostos (há melhor motivação?). Daí ser adepto potencial do Mónaco.
Há uma grande confusão que paira no ar nos dias que correm. Os feitos desportivos (não de todos os desportos, só daquele que congrega as preferências do povo) são a versão contemporânea das conquistas marítimas de outrora. São esses os feitos que hoje enobrecem o país, ou parte dele. Como se o país tivesse obrigatoriamente que se rever nas façanhas desportivas deste ou daquele, ou de um grupo de desportistas que defendem a mesma camisola, que são apresentados como o espírito vivo de uma cidade, de uma região. Ontem, mesmo, como o espírito vivo de um país inteiro. Como se fosse imperativo categórico de todos os portugueses estar ao lado do clube da minha terra, como se ontem todos tivéssemos que envergar de azul e branco. Em nome de Portugal, diriam os que não se revêem naquela filiação clubista, como argumento poderoso para torcer por aquelas cores.
Sempre me causaram espécie as iniciativas que empurram a população para uma necessária unanimidade em torno de uma causa. Nunca me dei bem com os comportamentos impostos porque é bom-tom encarreirar pela tendência dominante. Os guardadores do rebanho, aqueles que aparecem em público a ditar as regras de comportamento, são pessoas a quem não são reconhecidos atributos éticos para conduzir os fiéis devotos que compõem o rebanho.
Esta repugnância é congénita. Talvez seja a minha rebeldia latente a vir à superfície. Porventura fala aqui mais alto a veia individualista que lateja, bem viva, dentro de mim. É por isso que desconto o argumento do apoio ao clube da terra, quanto mais não seja “por representar o país”. Noutras circunstâncias fui levado a concluir que o meu país não é Portugal. A minha família e os meus amigos são o meu país. Logo, aquele argumento que convoca o apoio necessário pela representação nacional cai pela base.
Até porque em todos estes anos de vida, todos passados nesta cidade, fui apreendendo a conviver com os exageros dos adeptos deste clube, com a cegueira clubista que incendia ódios, com a forma exacerbada como se colocam ao lado do seu clube e nada mais vêm à sua frente, toldando a razão e deixando vir ao de cima uma emoção primária. Estou cansado da retórica oficial, patrocinada por tantos políticos sempre dispostos a prestar vassalagem à sinistra personagem que lidera este clube. A retórica oficial que vinca a necessária identificação entre o clube e a cidade, indo mais longe na ambição de tecer um vínculo indentitário entre a cidade e todas as regiões que desprezam o centralismo excessivo da Lisboa capital.
Cansado do timoneiro desta agremiação (sim, timoneiro: ou como se qualificam as criaturas que vencem eleições com 99,3% dos votos? Faz lembrar Cuba, o Iraque de Saddam, etc.), espelho do mais tenebroso que existe no meio desportivo nacional, senhor de uma verborreia que caustica adversários, destruindo impiedosamente todos aqueles que não se curvam perante si. Quando destila o seu palavreado é como se tratasse de uma encíclica papal avidamente consumida em cada palavra pelos seguidores possuídos de uma fidelidade canina.
Para cúmulo da desidentificação, este clube teve um treinador arrogante, vaidoso, prepotente, narcísico, anti-desportivo, sectário. Uma pessoa que teve o desplante de produzir a seguinte afirmação (que ouvi num noticiário matinal): “daqui a cem anos, serei dos poucos treinadores portugueses que ganharam a Liga dos Campeões. Daqui a cem anos o meu nome será o único a figurar nos eleitos que ganharam a Taça UEFA e a Liga dos Campeões”. Afirmações deste calibre dizem tudo sobre o ego doentio da personagem.
Agora todos teremos que carregar um sticker na memória para não esquecermos da evidência enfatizada pelo senhor que vai deixar de treinar esta equipa. E passar o sticker às gerações futuras, para que nunca se esqueçam deste feito que traz riqueza e grandeza ao país, que o transporta para os píncaros do desenvolvimento entre os parceiros da União Europeia. Esta pessoa, vestindo uma vaidade incomparável, deve estar a congeminar no seu íntimo que merece ir parar ao Panteão Nacional quando deixar o mundo dos vivos. Por enquanto parece que vai trabalhar para Inglaterra. Paz à sua alma. Que vá e não volte. E que tenha muitos insucessos na sua vida profissional, para ver se cresce como pessoa.
Já estou a ver as cenas dos próximos capítulos. Amanhã, Miguel Sousa Tavares, o “taliban do norte”, publicará um apaixonado artigo de opinião a louvar os feitos desportivos do clube do seu coração. Se o fizer como no ano passado, depois de outra vitória europeia conquistada em Sevilha, o taliban do norte será o ideólogo oficial da linha politicamente correcta que impõe a vassalagem nacional perante as conquistas do clube da terra. Eu não estarei entre esses. Para minha desdita, estou votado à dissidência.
Orgulho? Sim tenho orgulho por dentro de horas estar de viagem para Atenas, para bem longe destas paragens preenchidas por hordas inebriadas pela conquista desportiva. Como se ela fosse a mola que impulsiona a felicidade das pessoas, passando por cima das condições materiais que ainda nos faltam para podermos rivalizar com o resto da Europa onde estamos integrados.
Porque a vida não é futebol, nem o futebol resume a vida que vivemos.
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